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Do ponto de vista dos governos da 1ª República a vitória terá sido determinante para a conservação territorial, mas na prática a entrada na guerra na Europa para o Partido Democrático de Afonso Costa terá sido uma tábua de salvação do regime. Na memória dos combatentes que estiveram no terreno ficou os sacrifícios, as humilhações, mas também o sabor da vitória.


A República ao colar a memória da guerra à memória do Estado quis reconstruir um sentimento nacional republicano que permitia relembrar a fundação, a afirmação territorial a independência nacional.  


Em Portugal, muitos concelhos apresentam monumentos alusivos aos mortos da Grande Guerra e até talhões de sepulturas específicos para os combatentes da Grande Guerra.


Com a Grande Guerra foi a primeira vez que os Estados tiveram a preocupação de recolher e enterrar individualmente os seus mortos, num sentimento marcado e colectivo que se tratava da guerra que terminaria com as guerras.


Em Portugal o centro do "Culto dos Mortos pela Pátria" encontra-se na sala do capítulo no Mosteiro da Batalha, onde em honra dos soldados mortos em combate, representado pelo túmulo dos soldados desconhecidos, se encontra uma guarda de honra permanentemente, e uma chama acesa, também conhecida como a "Chama da Pátria".


O local foi escolhido especificamente para produzir uma continuidade entre o passado e o presente colectivo nacional, procedendo a uma montagem mnemónica entre a vitória sobre Castela, nas campanhas de 1383-1385, onde Portugal conquistou a sua independência e o reconhecimentos internacional do Estado republicano com a vitória na Grande Guerra onde alcançou os mesmos objectivos (Sobral, 2009:29)


Criou uma ideia de que a morte chegou a quase a todas as famílias dos soldados envolvidos no conflito e transpôs a ideia universal da "morte em combate" como um sacrifício em prol da causa nacional. Assim juntou a morte dos soldados do CEP e das Expedições a África como um sacrifício nacional e publicamente proclamou uma partilha  colectiva e nacional de comemoração e de homenagem com a edificação de monumentos "aos mortos gloriosos". Foi um processo de glorificação do Estado, mas também um processo de que ajudou a mitigar o sofrimento das famílias e dar sentido à sua morte.


A morte na guerra, e em particular à escala da de 1914-1918, foi entendida por alguns como uma morte com sentido, e aos familiares enlutados podia até ser retirado algum consolo no reconhecimento público do sacrifício dos seus entes queridos. Foram dadas pensões do Estado as órfãos e viúvas e foram erigidos monumentos colectivos em memória dos mortos.


A celebração do "Dia do Armistício" (11 de Novembro) relacionada com a vitória de Portugal na Entent conta a Alemanha, não faz parte da memória nacional, como outras datas comemoradas com dias nacionais (feriados), como: 1 de Dezembro, 10 de Junho, 25 de Abril  ou 5 de Outubro que são marcos fundamentais para a memória colectiva e para a unidade nacional. É uma data esquecida no calendário da República e substituída no calendário de efemérides pelo 9 de Abril (La Lys) mais relacionado com o sofrimento de mais   8.000 mortos e 25.000 feridos, capturados ou desaparecidos (Rosa, 2010:349). No entanto, com a celebração do Centenário da Grande Guerra e a globalização dos meios de comunicação, o dias 11 de Novembro tem sido mais divulgado em Portugal.


A globalização do conflito, e a guerra efectiva em território nacional, Açores, Madeira Cabo Verde, Angola e Moçambique, apresenta um interesse concreto no imaginário memorial do conflito, perfeitamente enquadrado na cultura europeia e em particular dos vencedores.


A ruptura social causado pela guerra, pelo contacto dos nossos militares com a sociedade francesa e inglesa, representada homogeneamente nas trincheiras, e a necessidade da República dar um novo sentido ao sacrifício levou a que fosse construída uma simbologia ligada ao "Mito da Experiência de Guerra", a fim de promover a unificação patriótica e a legitimando do poder político.


Houve um esforço público de reivindicação da glória e do sacrifício pela Pátria, numa tentativa de anulação do horror e da atrocidade que a guerra é em si mesma. No período pós-bélico, foi sendo construída a memória histórica que, apesar de vencedores, deixou profundos traumas psicológicos geracionais, não tendo na 2ª República o poder político aderido à universalidade comemorativa do "Dia do Armistício", através de um discurso que reflectisse a memória oficial e a memória pública.  


Logo no princípio houve uma dificuldade nacional em escolher o dia da comemoração do fim da guerra, entre a data de 11 de Novembro, 14 de Julho e 9 de Abril, tendo acabado por escolher comemorar a data de uma derrota, muito ao espírito derrotista nacional.


A falta de revindicação, por parte do Exército, de uma comemoração oficial do "Dia do Armistício" e o seu registo como feriado nacional, prende-se muito à falta de "espírito de corpo" que o Exército apresentava durante a Grande Guerra, com uma classe de oficias sem  tradições, praças incultos e iletrados, sem formação militar que os socializasse para uma consciência colectiva de dever e uma incapacidade global de compreender as razões da intervenção portuguesa na guerra, sentiram-se envolvidos num jogo político, abstracto e sem outro sentido que o de garantir a continuidade no poder da classe política.


Mas a consagração dos mortos e a perpetuação da sua memória, acabou por extravasar as necessidades políticas, afirmando-se como uma resposta às perdas humanas e aos efeitos na sociedade civil no contexto social e cultural do pós-guerra.


O "Mito da Experiência de Guerra", no culto aos mortos assumiu  destaque desde o início da guerra e teve o seu expoente na consagração do Soldado Desconhecido.


Neste contexto foram criados cemitérios militares, à imagem do que estava a ser feito nos países aliados, regulamentados pela Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra, entidade também responsável pela identificação, concentração e inumação dos corpos.  Devido a limitações orçamentais e de índole sanitária, o  Serviço de Sepulturas de Guerra no Estrangeiro não conseguiu que todos os mortos pudessem ser repatriados, levando a serem depositados os corpos por muitos cemitérios militares no estrangeiro, nomeadamente: 88 na Alemanha, 23 na Bélgica, 2 na Espanha, 141 na França, 1 na Holanda e 3 na Inglaterra.


Pelo número de mortos, na maioria dos cemitérios militares delimitaram-se secções portuguesas, no entanto, em Richebourg l'Avoué, encontra-se um cemitério militar exclusivamente português com 1.831 mortos, dos quais 238 são desconhecidos.


Na Bélgica no cemitério de Schoonselhof (Antuérpia) encontram-se sete campas de militares do Corpo Expedicionário Português (CEP). Em território nacional ainda não existe um cemitério militar que à imagem do que acontece por toda a Europa, se perpetuasse e assumisse o cultos dos mortos e se enaltecesse o reconhecimento do valor do sacrifício, procurando transcender o luto individual por uma celebração colectiva.

Para o desenho dos cemitérios militares a Comissão Portuguesa das Sepulturas de Guerra, colheu a estrutura dos cemitérios militares ingleses onde a simplicidade e geometria da arquitectura neutraliza o impacto da massa de mortes que se vinha a registar desde o início da guerra.


Foi introduzido um novo léxico no culto funerário, religioso e patriótico: na guerra não se morre mas cai-se, a vida não se perde mas doa-se, não se desaparece mas vive-se eternamente, num acto de transfiguração da morte em heroísmo.


A tradicional cruz dos cemitérios civis é substituída pela "Pedra da Lembrança", talhada em forma de altar, o "Altar da Pátria", para dar sentido a uma nova religião "laica", a uma nova liturgia baseada na sacralização do eterno sacrifício colectivo em nome da Nação (Correia, 2009:356-7).


O "Mito da Experiência de Guerra" ficou ligado à situação gerada pela guerra de trincheiras, onde se verificava a quantificação física do território conquistado, dos mortos e existia uma diferenciação absoluta entre frente de guerra e retaguarda.


Nem 1914 existia uma transferência psicológica entre a virilidade e a guerra, e civilizacional entre modernidade e a guerra. Na retaguarda a população civil não tinha uma plena consciência da atrocidade da guerra. A própria propaganda oficial tendia a levar os cidadãos a considerarem a guerra como uma batalha entre o bem e o mal ou a liberdade sobre a opressão, sem um princípio absolutamente ideológico, como na 2ª Guerra Mundial, o que ampliava o sacrifício individual sacralizando-o.


O "Culto do Soldado Tombado no Campo de Honra" veio  progressivamente substituir o "Mito da Experiência de Guerra", ligado à consequência humana da guerra, face à devastação social que produziu em todos os Estados intervenientes. A nível político o "Culto do Soldado Tombado no Campo de Honra" implicou o abandono da guerra como um instrumento da continuação da acção política, mas continuará a ser um ideal dos nacionalismos, dentro da religião cívica (Mosse, 2009:229-36).


Na arte funerária a simbologia cristã foi colocada ao serviço da religião cívica do nacionalismo e na estatuária os temas cristãos declinam em favor dos temas patrióticos, tomado em geral referências a virtudes como o heroísmo e o patriotismo.


O ideal de camaradagem existente na Grande Guerra, ligado à vida comunitária nas trincheiras, reflecte-se na estrutura dos cemitérios militares, propositadamente na inexistência de mensagens personalizadas nas lajes tumulares, à excepção do nome e identificação militar do soldado e os símbolos nacionais, intencionalmente gravados à mão sobre as pedras, dão-lhes um espírito sagrado sem a intenção de glorificar a guerra (Rosa, 2010:245).


Nos talhões reservados aos combatentes em cemitérios nacionais não foi completamente seguido o princípio da igualdade na morte, ao fazerem-se referências aos postos militares dos combatentes, fruto da inexistência de um cemitério militar nacional onde se garantisse os critérios de produção das lápides e porque as campas nos cemitérios locais receberam um afecto da comunidade próxima e de familiares, que tenderam a exaltar o sacrifício individual sobre o colectivo.


Foi o desmesurado número de mortos de guerra que obrigou os estados europeus a criarem os cemitérios militares. As perdas massivas e a duração dos combates impedia as famílias de os velarem. A Inglaterra foi a primeira a ter cemitérios militares seguida logo pela França, ainda em 1914, tendo apenas começado a transladar os soldados para estes locais em 1915. Nos finais de 1915 a Alemanha também inicia este processo.


O dia 11 de Novembro ficou a nível europeu, pelo menos entre os vencedores, como o dia do "Culto dos Mortos", mais correctamente o dia do "Culto do Soldado Tombado no Campo de Honra". A consagração de um túmulo dedicado ao "Soldado Desconhecido" foi mais um acto simbólico que se acrescentou à mitologia que rodeia os mortos e onde se faz arder a "Chama Eterna" que recorda à sociedade o sacrifício partilhado pelos seus concidadãos.


Só em Abril de 1921 é que foi efectuado a concretização do túmulo do "Soldado Desconhecido" em Portugal, o qual foi edificado no Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha. Houve o cuidado de fazer chegar um soldado da frente africana e outro da frente europeia. A inserção do túmulo num espaço da Igreja reflectiu um abrandamento do conflito entre a República e a Igreja.


Em 1921, as datas de 10 de Junho e de 14 de Julho perderam definitivamente importância comemorativa e o 9 de Abril passou a ser consagrado como o dia central das comemorações (Correia, 2009:360).


Escolha errada, e ainda hoje não corrigida, que comemora a vitória alemã sobre os portugueses em vez da vitória do esforço português e aliado sobre os alemães. Esta situação demonstra a incapacidade da República em providenciar uma estrutura ideológica que partilhe uma memória oficial, um acontecimento que se afirmasse em comunidade, em vez de pensar de forma individual. Nitidamente um facto ligado à psicologia colectiva nacional de "ignorar ou esquecer" que levou à queda da 1ª República.


À parte dos cemitérios, os monumentos constituem a outra face da memória da Grande Guerra. Constituem-se como padrões da religiosidade cívica que a República disseminou pelo País, espelhos da ideologia oficial e memória do sacrifício colectivo.


A intenção desses monumentos era de centralizar a localização da celebração do 11 de Novembro, em redor de uma festa popular e litúrgica de alma republicana. Em Londres o "Dia da Recordação", "The Remembrance Day" é recordado no Domingo mais próximo do dia ao Armistício (11 de Novembro).No entanto as dificuldades da 1ª República administrar e de congregar a Nação em volta de "algo", ficou patente na dificuldade de produzir e implantar esses monumentos, que por um conjunto de vicissitudes acabaram por terminar de ser erigidos só na década de 40 (Correia, 2009:361).


Os monumentos enquanto edificações simbólicas podem ser agrupados em categorias, de acordo com a forma: padrão, obelisco e monumento.


Os padrões são em regra muito padronizados, com a intenção de uniformizar a imagem simbólica cívica e patriótica da República e de demonstrar a existência de uma centralização ideológica.


Os padrões são caracterizados por um carácter sóbrio e austero, em  forma de coluna ou pilar com a "Cruz de Cristo" ou a "Esfera Armilar" no topo, assente numa base de dimensões variáveis, com, ou sem, estatuária simples representando um soldado ou uma alegoria (morte ou a Pátria) e onde são reflectidas as inscrições memoriais.


Os monumentos edificados aos Combatentes da Grande Guerra foram provenientes de iniciativas individuais, que reflectiram não só a importância política e social do luto local, mas também a capacidade económica do município.


Um factor relevante, que se reflecte na estatuária, é o facto de não ter existido combater no território continental, e por conseguinte, a inexistência de uma imagem vivida de guerra e sofrimento entre civis da metrópole e esta ausência reflectiu-se na simbologia monumental dos projectos nacionais. Também é observável o reflexo da laicização da sociedade, imposta pela República, na quase inexistência de epigrafia religiosa nos monumentos e na utilização de praças e avenidas para a colocação dos mesmos, normalmente longe de igrejas.



Cemitério Naional Português de Richebourg, em França

Cemitério Civil do Alto de São João, em Lisboa

Sobral, José Manuel, Maria Luísa Lima, Paulo Castro e Paulo Silveira e Sousa(2009), "A Pandemia Esquecida, Olhares comparados sobre a pneumónica 1918-1919", Lisboa, 1ª ed., Imprensa de Ciências Sociais.  


Correia, Sílvia (2009), "Mamória da I Guerra Mundial", in Fernado Rosas; Fernanda Rollo (org.), História da I República Portuguesa, 2ª Ed. (2010), Lisboa, Edições Tinta-da-China, pp. 349-370.


Mosse, George Liébert, (2009), "De la Grande Guerre au totalitarisme, La brutalisation des sociétés européenes", France, ed., Pluriel .  


Rosas, Fernando e Maria Fernanda Rollo, coordenação(2010), "História da Primeira República Portuguesa",2ªed., Lisboa, Tinta da China.

Bibliografia

Culto dos Mortos

Cemitérios