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A Vida nas Trincheiras

A Caminho da Frente


As tropas portuguesas seguiam da zona de desembarque (PD) onde se encontravam os acantonamentos para a linha da frente por via férrea para a zona de guerra. Após passar a zona de Amiens o cenário mudava pela predominância de fardas militares, acampamentos militares e hospitais. Perto de Étaples começam a ser vistos os primeiros cemitérios. Em Hesdigneul as tropas faziam o transbordo dos comboios civis para os comboios militares de transporte de munições ou de feridos, que os levavam até St. Omer (Almeida, 1919:83-86).


Nas memórias do Tenente Barros Bastos do Batalhão de Infantaria 23 é relatado que tropas desembarcadas em Brest (Porto de Desembarque) partiam no dia 26 de Fevereiro de 1917 em direcção a Aire-sur-la-Lys, onde chegaram três dias depois a 1 de Março. Mais acrescenta que um dia antes de chegarem já se ouviam o troar dos canhões ao longe.


Depois de chegar a Aire-sur-la-Lys ainda tiveram de se deslocar pela via ordinária (estrada) até Euquin-les-Mines onde ficaram acantonados. Algumas semanas depois as tropas do Tenente Barros Bastos (BI 23) foram transferidas para acantonamentos em Ecques (Mea, 1997:46).

A Distribuição das Tropas


Na linha da frente encontrava-se a infantaria que ocupavam as trincheiras e os apoios desde Fleurbaix a Festubert, passando por Rua de Bois, Fanquissart, Neuve-Chapelle e Ferme du Bois. Seguia em segunda linha a artilharia de campanha e depois os Quartéis-Generais de Brigada e as ambulâncias da frente.


Mais à retaguarda, , perto de Lestrem e Lagorgue os Quartéis-Generais de Divisão e serviços de apoio logístico e administrativos. Em Merville o Hospital de Sangue nº1, St. Venaint o Quartel-General do C.E.P., e Marthes, Ecques , Dohen e Fauquembergues as ambulâncias de retaguarda. É nestas últimas zonas que os batalhões iam para descanso na retaguarda, "recoca", ou preparação para uma nova ida para as trincheira.


O Batalhão de Infantaria 23 entrou pela primeira vez nas trincheiras a 7 de Maio de 1917. Primeiro estivaram parados em Levantie e só após o bombardeamento alemão que aconteceu pelas 23 horas é que entraram nas trincheiras no sector de Neuve-Chapelle, pela Winchester Trench, onde se encontrava o Regimento de York and Lancaster. Em Agosto de 1917 o BI23 encontrava-se no subsector 1 do sector Neuve-Chapelle, onde guarneciam a linha de reserva e o reduto Sign Post (Mea, 1997:47).


Em Novembro de 1917 o BI23 esteve em repouso em Mametz, de onde partiu novamente para as trincheiras, desta vez para o Sector de Ferme du Bois (Mea, 1997:49).

A Linha da Frente - Front


Existia uma hierarquização do perigo de zona para zona, assim desde a linha da frente às bases da retaguarda, existia o que se poderá equivaler aos os sete círculos da guerra da "Divina Comédia", mas em que os eleitos estão no inferno.  


Na retaguarda a vida era triste e monótona, longe de tudo menos das lembranças longínquas que enchiam de tédio os soldados e lhes  destruía a vontade, na época a chamavam "zona neutra".


O caminhar da retaguarda para as linhas da frente (Linha de Apoio, Linha B e Linha A) é como atravessar todos os círculos da agonia até entrar nas planícies da morte. Casa destruídas, espigões de madeira fracturados em ruas cemitérios, campos eriçados de arame farpado, panos de paredes carcomidas, rebentamentos de granadas de artilharia, a constante rasoira terrível das metralhadoras e a terra esventra-se em rasgões.    


No front junto ao parapeito (Linha A), o perigo fustigava os nervos e a vida exaltava todas as faculdades de sentir. Escapava-se à morte com algumas chicotadas na medula, e vem a vontade de viver. Nas trincheiras "cava-se" e "mergulha-se" no chão. As trincheiras eram um sistema de fossos rasgados no chão até à altura dum homem em três linhas paralelas: Linha de A, Linha B e Linha de Apoio, ziguezagueando e entreunindo-se até aos parapeitos sobre a "terra de ninguém".  Nos fossos abriam-se lateralmente cavernas, uma espécie de silos e as granadas e a chuva revolviam a terra transformando-a  em lama e água. Tudo é lodo e miséria, a esperança de vida assenta apenas no acaso.


Os homens transformam-se com o passar do tempo, ganham com o tempo uma fisionomia especial, tanto mais dura quanto mais perto do inimigo. A vizinhança da morte, as longas vigílias, o sol, o frio envelhecem a a expressão, dissipam a juventude e transformam-nos em velhos. Na faixa estreita das trincheiras vive-se junto à morte, no meio de balas e granadas, que são cegas. Os vivos têm de viver em promiscuidade com os mortos, mais do que isso, com as mutilações dos cadáveres.  O cheiro é por vezes nauseabundo e o fedor a carne putrefacta paira no ar. O chão está tingido de sangue.


As trincheiras são uma grande cova, onde se aprende o ofício de morto. Sim, uma cova muito longa, tão longa que nem se mede com a fita. A unidade métrica nas trincheiras são os sete palmos de terra. A primeira linha, com muitos soldados, é uma espécie de vala comum.


O Horizonte de destruição e as Imagens de Cristo e Nossa Senhora


Junto à zona da linha da frente, em Neuve-Chapelle, encontrava-se um calvário de pé. Os combates tinham abarrotado os cemitérios mais próximos. Muitos soldados tinham caído por terra, com o revolver do chão pelas granadas de artilharia, e ficado sepultados ao acaso, anónimos, no lugar onde tombaram, mas o Cristo ficou intacto.


No final da tarde quando as sombras deixam de se sentir, o Cristo do calvário intacto, erguido no alto do seu madeiro domina a paisagem e assume proporções de revelação divina. Cristo estende os braços e espalma as mãos sangrentas para o além, sobre toda a terra do martírio e dos combates. No chão escondem-se a turba martirizada, a multidão dolorosa e redentora, o soldado da grande guerra.


Os Raids


Sob a designação de raids englobavam-se todas as operações militares executadas pela infantaria no front contra o inimigo, em acções de trincheira a trincheira, e para a execução destes existia o serviço de patrulhas. As patrulhas eram dimensionadas com numero de homens e equipamento utilizado conforme o objectivo. Assim, para espiar as linhas inimigas, atravessando a "Terra de Ninguém" rastejando até o mais próximo possível do parapeito inimigo, "Patrulhas de Escuta", utilizavam-se dois homens. Para percorrer a "Terra de Ninguém" como simples elemento de segurança, "Patrulha de Segurança" utilizava-se uma dúzia de soldados. E para destruir as defesas de arame farpado inimigo e fazer atrito sobre as linhas inimigas, "Patrulha Ofensiva", utilizava-se cerca de 30 a 40 homens e levava-se uma metralhadora. Só em 1918 é que se organizaram "patrulhas" com efectivos ao nível de companhia, aproximadamente 200 homens (Morais, 1919:68).


Estas patrulhas iam à "Terra de Ninguém" ligadas o seu parapeito através de um arame guia que lhes servia para comunicar, através de esticões e quando deixados no terreno também serviam para que em futuras operações se tivesse alguma indicação sobre passagens possível entre os arames farpados inimigos.  Em 1918, quando as "Patrulhas Ofensivas" começaram a ser organizadas com a dimensão de companhia, passaram a integrar telefonistas com ligação constante com um posto de SOS da 1ª Linha.


Porque as operações de patrulha eram sempre de noite, e quando possível aproveitando as noites escuras, havia o cuidado de efectuar camuflagens, o que implicava pintar a cara e mãos de preto com graxa ou carvão e nas noites de neve vestir um impermeável branco que os confundia com ela. Nas trincheiras eram conhecidos pelos fatos à "pierrot" (Morais, 1919:69).


Se desde a chegada às linhas da frente em 1917 que as unidades eram atacadas por bombardeamentos regulares e sofriam casualmente raids alemães, mas desde Março de 1918, a Frente Ocidental apresentava uma actividade cada vez mais intensa, tendo existido um raid alemão sobre as nossas linhas que foi respondido com um raid a 12 de Março, seguindo-se outros raids alemães e portugueses em consecutivas respostas de uns e de outros. Nessa altura encontrava-se na zona de combate a 3ª e 6ª Brigada, que foi suportando e fazendo os sucessivos raids. Mas o perigo não se cingia apenas àqueles poucos quilómetros da frente de combate, uma vez que a artilharia alemã, suportada por canhões de 240mm, chegava a bombardear até 30 km na retaguarda, chegando a atingir os comandos divisionais e até o comando do CEP (Malheiro, 1925:22-3).

As Noites de Vigília

Na primeira linha junto ao parapeito, as noites eram de vigília em silêncio, passada a escutar o que não se conseguia ver. Nas longas noites geladas do Inverno de 1917,  faziam por se manterem quentes, "vivos", fumando cigarros mergulhado a cabeça escondida na trincheira (Morais, 1919:95-6).



Descrição de um abrigo no Front (primeira linha)


"Acompanhado dum capitão, velho amigo e dum tenente que comandava então a companhia em que eu deveria ficar, dirigi-me trincheira abaixo, em direcção ao abrigo que deveria ocupar com ele e alguns subalternos mais. Era um dug-out, um elefante, de ferro espesso e canelado coberto com sacos de terra, tendo a um e outro lado duas camas e uma ao fundo, que me foi destinada. As camas eram o que há de mais simples: um rectângulo de travessas de madeira a que adaptavam uns pés, feitos de travessas cortadas. Como enxergão, uma teia de arame de fazer capoeiras, que na guerra tem a aplicação de cobrir as passadeiras de fundo, para evitar o escorregão e a queda. E como colchão, mais aproveitável durante o dia que de noite, umas mantas, algumas vezes, raras, estendidas sobre um pouco de palha que o cuidado amigo dum soldado nos vai procurar. Ali ficámos até que a rendição ficou concluída e, assinados os recibos e comunicada para o batalhão, o oficial substituído partiu..."


in Na Grande Guerra, Américo Olavo.


Antigas estruturas de "dug-out elephant", constituídas por peças de ferro canelado.

Abrigo de Artilharia 75mm. No abrigo de infantaria vê-se o aquecimento, a embalagem de corned-beef e ao fundo o parapeito. a legenda da gravura diz: Num Elefante, Capt. Menezes, França 1918.

Fado do Cavanço


"Da Inglaterra, dos ingleses, dizem as piores coisas, e pelas horas calmas, para divertimento, na presença das ordenanças e quantos outros soldados, cantam à guitarra, inseparável de portugueses, fados do cavanço em que são achincalhados mesmo os mais altos comandos. "


Numa noite de Outono de 1917, Cunha Leal, recentemente chegado ao sector português da Flandres, ouviu o famoso «fado do cavanço» cantado ás escondidas por três soldados do CEP. Entenda-se pelo pomposamente designado Corpo Expedicionário Português, designação imitar de BEF (British Expeditionary Force), cuja sigla (CEP) os espirituosos de Lisboa traduziam por «Carneiros de Exportação Portuguesa».


«Nesta vida de Cavanço

A cava, como se vê,

Se os boches dão um avanço

Cava todo o C.E.P.»


(in Na Grande Guerra, Américo Olavo)



Fadiga Física e Moral


No relatório efectuado pelo Tenente-coronel Eugénio Carlos Mardel Ferreira, em 4 de Abril de 1918, indicava que a sua 4ª Brigada de Infantaria tinha passado 98 dias seguidos nas trincheiras até 31 de Dezembro de 1917 e que quando passada para a retaguarda não tinha ficado em descanso, por para além da instrução teve de fornecer numerosos contingentes para trabalhos de enterramento do cabo de comunicações telegráficas, trabalhos de reparação de entrincheiramentos, para além de fornecer efectivos para guarnecer os postos da "Linha das Aldeias". A 7 de Fevereiro entrou novamente nas trincheiras, guarnecendo o sector de Fauquissart e ainda fornecendo diariamente grupos de trabalho, entre 250 a 350 homens em média, para o serviço de enterramento do cabo de comunicações telegráficas e para auxiliar a 4ª Companhia de Sapadores Mineiros em trabalhos de reparação de entrincheiramentos em Lavantie. O cansaço físico das tropas era tão notório que o Estado-maior da 2ª Divisão determinou a suspensão do fornecimento de homens para o enterramento do cabo.


O desfalque em efectivos começou com as baixas aos hospitais e ambulâncias, tanto em oficiais e praças, que ao não serem substituídos aumentavam o esforço dos que ficavam. Num processo de "bola de neve" assistiu-se a uma redução de efectivos tão grande que ao Batalhão em reserva não era dada a possibilidade de descansar ou mesmo de ter tempo para sua limpeza pessoal. A 4 de Abril de 1918 era evidente que a força física e moral das tropas tinha sido excedido.


Muitos oficiais apresentavam um verdadeiro sentido de dever e recusavam-se a baixar ao hospital, como exemplo um caso referido no atestado escrito pelo chefe dos Serviços de Saúde, Capitão-médico Joaquim de Assunção Ferraz Júnior, em 30 de Março de 1918, que o Tenente Henrique José Rebelo Branco se recusou a sair da primeira linha até dia 9 de Abril de 1918, quando foi ferido e gazeado, tendo sido evacuado durante a Batalha. Ele apresentava o seguinte quadro clínico:


“...devido ao excesso de trabalho que tem tido durante o corrente mês, está sendo portador duma «surménage» física, como consequência de sucessivas noites sem dormir e da comoção produzida pelo troar quase contínuo dos canhões e rebentar das granadas em torno deste Q.G., tendo determinado perturbações do aparelho digestivo, com intolerância gástrica, hepatite, diarreia, tenesmo, e perturbações do aparelho circulatório, notando-se um desdobramento do 1º tom no foco aórtico e sopro anémico acentuado, e a acção contínua de gazes, - Em Campanha, 30 de Março de 1918 – “


Havia a consciência que a falta de oficiais e sargentos diminuía a resistência das praças, porque estas sem o exemplo dos graduados e com o excesso de fadiga acumulada em breve ficaram prostradas.


Os sintomas de cansaço nas tropas que ocupavam a primeira linha era notório, começava-se a verificar que os homens apresentavam "falta de vontade para as coisas mais insignificantes"


O BI 3 apresentava em Março de 1918 grande número de baixas às ambulâncias e hospitais, cerca de 117 praças e 6 oficiais, sem contar com os que se encontravam no gozo de licença. Mas a situação ainda piorou quando foram suspensas as concessões de licenças, provocando um aumento da deterioração da força física e moral. O BI 8 apresentava como razões para o esgotamento físico e moral a longa permanência em França, a longa permanência nas trincheiras, em grande parte no Inverno, os esforços nos trabalhos constantes de reparações das trincheiras, as chamadas diárias para ocuparem os postos de reforço durante os cinco dias em que se encontravam em reserva, a falta de conforto nos acantonamentos de descanso, como sucedeu em La Gorgue onde a ocupação das casernas foi do dobro da lotação e durante os períodos de descanso eram empregues em trabalhos de reparação do cabo de comunicações ou de entrincheiramentos. Por último, a excitação nervosa, ou comoção, produzida pelos constantes bombardeamentos.


No caso do BI 20, que tinha tropas vindas quase directamente de uma campanha em África e que foram enviadas para França, sem um intervalo suficiente para recuperar do paludismo.  Existia ainda um problema sanitário nos péssimos acantonamentos que esta Batalhão possuía na retaguarda.


Ao longo do mês de Março de 1918 os homens doentes que iam à revista de saúde aumentava de dia para dia. Apresentavam um estado depauperado, cansado e estropiado, demonstrando mais a necessidade de descanso do que de hospitalização. Os homens que baixam aos hospitais ou às ambulâncias apresentam em grande número sintomas de "astenia psicológica", um estado de stress psicológico devido à quantidade de angústias acumuladas que não conseguem superar e que tem reflexo nas defesas imunológicas do organismo, criando por consequência um "síndroma de fadiga crónica".


Num de muitas noites que o BI 13 se manteve na 1ª Linha, sem que se previsse a situação, quando se iniciou um ataque alemão de morteiros sobre a trincheira. O bombardeamento durou mais de duas horas e quando terminou o alferes de serviço foi procurar o soldado que se encontrava de vigia naquela zona. Quando lá chegou apenas encontrou a espingarda encostada ao parapeito. Mais tarde, quando o alferes passava pela 2ª Linha encontrou  o soldado desarmado, em cabelo, com o capote em tiras, a marchar com o corpo dobrado para a frente como quem quer se abrigar de algo. De seguida


"Pára. Levanta os olhos esgazeados para o ar, aponta com o dedo ao alto como se mostrasse alguma coisa, assobia numa imitação perfeita o zumbido do morteiro subindo, encolhe-se como uma bola, como um ouriço à espera, de encontro à escarpa... e de repente numa expressão trágica de pavor escacha os braços semelhando num rouquido animalesco a explosão do morteiro... e continuou assim trincheira fora...".


Passados meses, junto à BASE, o soldado continuava com os mesmos sintomas, rondando em torno dos barracões, fazendo destes as suas trincheiras e assobiando como os morteiros (Morais, 1919:98).


O medo levou a que alguns soldados se dirigissem ao Hospital em Ambleteuse queixando-se de dores terríveis, para a todo o custo fugirem da frente de combate. Uma noite que se esperava um ataque alemão, quando o Tenente Pina de Morais distribuía um suplemento de cartuchos, um dos seus soldados perguntou para que era aquilo e após os deitar no chão fugiu, só vindo a ser encontrado três dias depois.  Um factor que fazia aumentar o medo era o silêncio, que ao permitir meditar aumentava a consciência do perigo.


O Tenente Pina de Morais afirma que um dia viu um soldado a manobrar uma metralhadora, de olhos transtornados, executando o manojo da arma com exactidão mas sem um único cartucho no tambor, apontando para os aviões inimigos que nos bombardeavam. Outra situação deu-se quando um dos mais corajosos soldados do batalhão foi encontrado todo enrolado no chão encostado às travessas das trincheiras, situação que nunca anteriormente se tinha verificado. Quando mais tarde os médicos leram a correspondência que este soldado escrevera verificaram que era do tipo de despedida e quase testamentária (Morais, 1919:105-11).


Lord Moran, no seu livro "The Anatomy of Courage" aprofunda a questão dos efeitos psicológicos da guerra durante a Grande Guerra de 1914-1918, começando por abordar como a imaginação ajuda uns e destroi outros. A apatia em que alguns homens caíram, o olhar para o vazio e o medo inesperado, foram situações que começaram a ser observadas desde 1914. Tal como acontecia no Exército britânico o soldados portugueses também começaram a sofrer dos mesmos sintomas ao fim de algum tempo consecutivo na primeira linha. Isto colocava aos oficiais-médicos a responsabilidade de reconhecer as verdadeiras situações de embustes para fuga ao serviço na frente de combate. Sem aparente mal físico muitos apresentavam-se por problemas de quebra de moral.


Para a quebra do moral em muito contribuía a monotonia da rotina diária vivida nas trincheiras. Esta invadia o estado de espírito dos homens que se encontravam ali estacionados e que por ali se mantinham por tempo indeterminado.


"Monotony was a form os suffering reserved for active minds, which crave food like hungry bodies" (Moran, 1945:151).


Esta monotonia contribuiu para que no Inverno de 1917 se verificassem os grandes motins no Exército francês. A "Entente" deparava-se à data com uma situação generalizada de a quebra do moral que precisava de ser combatida, uma vez que se estava a propagar e a tornar um dos factores que mais aumentava a vontade e a imaginação para os homens para se manterem fora das trincheiras.


Por outro lado começavam a aparecer com frequência sintomas psicológicos de "apatia", como uma "anestesia natural" em relação à violência física e psicológica em que os soldados se encontravam nas trincheiras. A apatia tornou-se um veículos para o isolamento mental do indivíduo e um factor para a destruição da força de vontade e capacidade de combate individual, se bem que também era uma forma de defesa contra a loucura.


Na época ainda não existia uma compreensão para as questões do foro mental, Sigismund Freud ainda estava a fazer nascer a Psicologia, para compreender que uma vida prolongada nas trincheiras, ou os bombardeamentos consecutivos e intensos faziam nascer o "stress de guerra", e que estes factores enquanto causas podiam minorados. Tudo o que chegava aos soldados no front era comida, agasalhos e munições, não havendo nada para se distraírem e deslocarem o seu pensamento para longe daquele local. O Exército não criava este tipo de actividades desportivas ou culturais, tendo estas ficado, em parte, à mercê de iniciativas individuais ou de organizações civis, como a Cruz Vermelha.


Jaime Cortesão (1919: 81) refere: "Aqui sufoca-se. Esta vida triste e monótona, longe de toda a emoção profunda que não seja a lembrança dos que estão longe, enche deste mal terrível e tediento, destruidor da vontade a que aqui se chama neura."


Por causa da monotonia os homens bebiam para fugir ao presente, ou criavam humor para ajudar a ridicularizar o presente e fugir ao pensamento sobre morte. A falta de objectivos, como por exemplo a obtenção de uma licença para ir a casa, tornava o presente insuportável e foi um factor que contribuiu para algumas das situações de revolta.(Moran, 1945:152). As condições meteorológicas agressivas do Inverno de 1917 também tiveram um grande efeito na fadiga psicológica dos soldados.


"Winter under these conditions has a kind of petrifying effect on the mind. There is a peculiar blunting of impressions, a strange vancacy so that everything after a time is accepted passively. Men are affected very differently" (Moran, 1945:85).


Os dias intermináveis do Inverno de 1917 bloqueavam o pensamento, chegando os homens a desejar que algo acontecesse. Surgiu o "tédio" como um sintoma da monotonia e não como a causa da fadiga psicológica. No final de 1917 a fadiga psicológica tinha-se espalhado por todos os exércitos da "Entente", convertendo-se como uma doença contagiosas do espírito (Moran, 1945:153).


Com a permanência nas trincheiras era inevitável o enraizamento do medo na alma, derivado de meses de inactividade nas trincheiras, e que acabava por influenciar o comportamento dos homens. Era o descobrimento do perigo que ia chegando aos poucos, conforme os homens começam a aperceberem-se que não eram espectadores na guerra, mas sim actores e alvos, e que podem ser as próximas vítimas (Moran, 1954:30).


Esses pensamentos corroíam a força combativa e desmoralizavam. Quantas vezes os soldados pensavam sobre a sorte que tinham em não terem sido atingidos, mas pouco a pouco começavam a pensar que cada vez existia maior probabilidade de lhes acontecer e esta apreensão do perigo ia criando medo e destruindo a capacidade de resistência. Um oficial médico do 4º Batalhão do Regimento Black Watch, que esteve com o seu batalhão durante catorze na frente de combate em Ypres referiu:


"There was a feeling of tension,  a feeling of jumpiness. Not with standing the work, the men had previously sung going up to the trenches and coming back, but they gave it up; they gave up all social business, they were getting into a state of nervous exhaustion. The troops were then moved to another part of the line and  the moment they were moved you would not have known them for the same battalion" (Moran, 1945:120).


A falta de descanso derivada em parte dos bombardeamentos constantes e cada vez mais poderosos, colocaram o "stress de guerra" noutro patamar. Na guerra anterior, "Guerras Napoleónicas",   o combate acontecia em corpo-a-corpo e a  poucas dezenas de metros podia-se estar em protecção ou a descansar. Nesta Grande Guerra o desgaste criado por se estar constantemente na zona de combate levou a que muitos dos homens capazes para combater chegassem a um ponto em que psicologicamente quebravam. Não existia um momento de descanso, não existia um momento de paz, não havia um local verdadeiramente seguro na zona de combate (Moran, 1945:75).


Nas trincheiras da Flandres os homens foram consumindo a sua força de vontade numa luta contra as circunstâncias que os cercavam. Quando os bombardeamento se tornavam mais intensos e se prolongavam, os homens deixavam de pensar no que poderia estar a acontecer aos companheiros e depois acabavam por deixar de pensar no que lhes estava acontecer. Com as explosões que os rodeavam acabavam por bloquear totalmente o pensamento, ficavam em estado de choque sem capacidade de combate. O que mais abalava os homens nas trincheiras era a incapacidade de controlar o perigo em que se encontravam, ficando à mercê dos fogo de artilharia inimiga sem qualquer capacidade de resposta directa, o que produzia uma sensação de indignidade na forma de morrer e à destruição da força de vontade individual.  Um homem abalado colocado na retaguarda em descanso recuperava a sua capacidade de combate, mas acumulavam a fadiga psicológica do "stress de guerra" que lhe ia reduzindo a sua capacidade individual de combate (Moran, 1954, 69).


A força de vontade individual, a coragem, era o "capital" dos homens nas trincheiras, o qual se encontrava sempre a ser consumido durante o tempo que ali permaneciam. O Exército deveria ter entendido que o gasto deveria ter sido criterioso em cada "cêntimo" que gastava, com o cuidado de não levar a coragem dos seus homens à "falência", porque uma vez esgotada a coragem um soldado está acabado. A utilização do descanso físico e os sucessos militares poderiam ter sido utilizados para recuperar esse "capital".


Licenças de Campanha


Todos esperavam que se efectuasse uma substituição de tropas ao fim de um ano, à semelhança do que acontecia com as forças expedicionárias que foram enviadas para África e como tinha sido publicado no Decreto n.º 3959, de 30/03/1918, que ficou conhecido com a designação francesa de roullement.


Na prática, muitos oficias que se encontravam em Portugal no gozo de licença de campanha aproveitaram este Decreto para obter a sua desmobilização, que acabou por ser concedida sem o Estado garantir as substituições em campanha (Martins, 1934a:178).


Esta situação agravou em muito a situação moral do CEP, reforçado negativamente pelo conhecimento de notícias publicadas em Fevereiro de 1918, num jornal de Lisboa.


“Nenhum outro exército, a não ser o nosso, inflige aos seus soldados o suplício intraduzível de lhes dizer que estão ali para sempre até que um tiro, um estilhaço ou uma tuberculose os tire dessa guerra, cuja duração ninguém pode prever” (Martins, 1934a:298).


A redução de efectivos foi tão elevado que levou ao esgotamento dos Depósitos das diferentes Armas, o que levou à execução de uma contínua transferência de oficiais e praças entre unidades para manter um equilíbrio de efectivos entre unidades, mas com uma consequência extremamente grave para a manutenção do “espírito de corpo”. Se a grande parte da falta de oficiais se devia às licenças de campanha, para as praças a principal razão ligava-se com baixas ao hospital, apenas porque eram diminutas as licenças de campanha que lhe eram concedidas.


Outra situação que implicava revolta era a possibilidade de alguns militares, geralmente oficiais, conseguiam vir a Portugal de comboio para o gozo da sua licença de campanha. Isto encurtava substancialmente o tempo de viagem, como alternativa ao transporte naval, que não só era mais demorado, mais perigoso e dependia das disponibilidades dos dois únicos transportes regulares com Brest, o “NRP Pedro Nunes” e o “NRP Gil Eanes”.


Foi um exemplo documentado da utilização desta alternativa de transporte aconteceu com o Alferes Humberto de Almeida, Batalhão de Infantaria 7, que nos conta da sua viagem iniciada em Bethune, até Portugal.


Daí partiu em direcção a Paris, tendo passado nas Estações de St. Paul, Abeville e parado em Amiens onde permaneceu durante duas horas. Ao longo do trajecto faz referência aos inúmeros comboios militares que no caminho se foram cruzando com ele. De Amiens seguiu para a Gare du Nord (Paris), onde pernoitou.


No dia seguinte tomou o comboio na Gare de Orsay (Paris) que o levou até Espanha. O comboio levou toda a noite até chegar a Bayonne onde parou por momentos. Depois passou por Biarritz e pela tarde estava em Hendaia (França), última estação de comboio em França. Aqui o Alferes Humberto de Almeida teve de tirar a farda e vestir-se à civil, por causa da "neuralidad de nuestros hermanos".


O comboio seguiu para Irun (Espanha), passou por San Sebastian, Medina e chegou a Salamanca onde parou por algum tempo. Depois seguiu para a fronteira portuguesa e entrou em Portugal por Vilar Formoso. Terá feito de seguida o trajecto Vilar Formoso, Entroncamento, Leiria. Em quatro dias era possível vir da Flandres até casa de comboio, mas esta possibilidade estava muito restringida pela neutralidade de Espanha. (Almeida, 1919:83-92).


As estatísticas revelam que dos 1.912 oficiais com licença de campanha concedidas, 822 não regressaram a França e dos 25 oficiais chamados a Portugal, 17 não regressaram. E contrapartida das 519 praças que obtiveram licença de campanha praticamente todas regressaram findo o período de licença (Martins, 1934a:298).


Estes números levaram à criação no CEP de uma Escola Preparatória de Oficiais Milicianos”, para colmatar a falta de oficiais nos batalhões de infantaria, que recrutaram os seus alunos entra as praças do CEP pela condição de cultura geral que apresentavam, obtendo a reposição de 78 alferes de infantaria (Martins, 1934a:299).


A Gíria do CEP

Alicate -- Soldado de infantaria de Transmissões

Avenida Afonso Costa -- Terra de Ninguém

Avenida dos Alferes -- 1ª Linha das Trincheiras

Barris de almude -- Projéctil de artilharia grande

Boche-- Soldado alemão

Boletim de Operações e Informações -- Almocreve das petas

Cachapim -- Soldados que conseguiram ser transferidos para a retaguarda, ou que tendo ordem de ir para as trincheiras nunca lá chegaram

Cavanço -- Fuga para a retaguarda

Comer graxa -- Levar com estilhaços (termo muito pouco usado)

Copos de meio litro -- Projéctil de artilharia pequeno

Cortar prego -- Ter medo

Elefante -- Abrigo metálico (chapa de ferro ondulado, em forma de arco)

Estaminets -- Lojas (nos acantonamentos os melhores estaminets eram as mess de oficiais e de sargentos)

Front -- Zona de combate

Front line -- linha da frente, também denominada “A Line”

Garrafas de litro -- Projéctil de artilharia médio

Lanzudo -- Soldado português

Língua do pica-pau -- Sinais de Morse

Linha das Aldeias -- Terceira linha das trincheiras (Village Line)

Menino -- Projéctil de morteiro ligeiro

Mobília -- Equipamento individual do soldado

Museu -- Abrigo do comando do Batalhão

Palmípedes -- Soldados de estado-maior ou que conseguiam não ser enviados para as trincheiras

Poilus -- Soldados franceses

Porco -- Projéctil de morteiro pesado

QG3 -- "Quartel General da Terceira Divisão", nome dado à papelaria Faës Flageollet em Aire-sur-la-Lys, na Flandres.

Recóca -- Serviços de apoio na primeira linha, cozinheiros, tratadores de gado, condutores, etc. longe do parapeito

Salchichas -- Balões de observação (drachens)

SOS -- Pedido de artilharia de apoio

Terra de Ninguém -- Espaço entre as primeiras linhas (no man's land)

Tommies -- Soldados ingleses

Trinchas -- Soldados portugueses que se encontram na 1ª Linha

Very Light -- Foguete de luz branca para iluminação nocturna

Zacarias -- Sniper inimigo


Os Lanzudos


No começo do Inverno de 1917 foram distribuídos aos soldados em França, pelicos e ceifões alentejanos. Houve, no entanto, alguns soldados que consideraram mas elegante usarem os agasalhos com o pêlo de carneiro virado para fora, o que lhes dava um aspecto curiosíssimo.


A primeira vez que os alemães viram circular os nossos soldados pelas trincheiras com aquele aspecto peludo, juntaram-se numa fileira junto ao parapeito a observar o espectáculo com muito espanto. Foi então que começaram a surgir as gargalhadas de desdém e a ouvirem-se largos "més...".


Não faltou a resposta bem portuguesa ao vexamento que assistiam:


"Carneiro será o teu pai, meu grande filho da ..."  (Brun, 1919:57)


Bibliografia


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