O Luto

 

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O Sentido do Sacrifício

No filme "J'accuse" de Abel Gance, de 1918-19, é focado pela primeira vez em cinema o regresso dos mortos. É uma visão apocalíptica onde se aborda o sentido do sacrifício humano e a inutilidade do mesmo. Os mortos regressam à terra natal e vêm que a vida continua e o espaço vazio deixado pelas suas mortes é de imediata reocupado. 

A cena final dos mortos vivos que caminham, como zumbis, em direcção a casa tem um sentido dramático acrescido, tanto mais que foi filmada com figurantes dispensados pelo exército francês em 1918, antes do armistício, dos quais muitos vieram a morrer posteriormente em combate. Os mortos são as figuras centrais do pós-guerra.

Como relatar as mortes, como transcender a brutal separação, como descrever a crueldade, são dos dilemas que os artistas, políticos, soldados e os cidadãos comuns têm de compreender e retractar, factos que modelaram a cultura europeia depois da Grande Guerra. Verificou-se um impacto directo entre as consequências da guerra e a transformação das correntes modernistas europeias que tinham nascido no início do século.

Verifica-se uma transformação da interpretação do sacrifício humano na guerra como um "melodrama", do período anterior à Grande Guerra, para a interpretação do sacrifício humano na guerra como um "mito", com uma evolução interpretava ao nível literário e plástico. O "mito " redefine os cânones do modernismo e as experiências artísticas de avant-garde não colidem com o tradicional e o naturalismo, transforma-os em simples rebeldes e inovadores dentro de uma evolução simultaneamente natural, cultural e tecnológica. 

 

J'accuse por Leucit

 

A morte "em combate" com o final da guerra foi substituída pela morte causada pela pneumónica (gripe espanhola) e a frente de combate (front) limitada às fronteira de batalha entre os beligerantes, alastrou-se por todos os territórios nacionais. há que acrescentar o regresso dos mutilados de guerra, imagens vivas do desastre da guerra.

 

Os Soldados Desconhecidos

O fim da guerra converte-se na "Festa da Vitória" e no "Luto Nacional" com o regresso dos soldados de França, uns vivos, os mutilados e outros mortos. O momento transformou-se por toda a Europa num momento de luto e Portugal não ficou à parte. Começou então a frenética procura pelos desaparecidos, milhares de corpos não identificados encontravam-se espalhados por cemitérios improvisados e campas improvisadas ao logo dos milhares de quilómetros da linha da frente. A identificação e localização de familiares e amigos tornou-se uma tarefa impossível.

  Milhares de soldados não tiveram direito a uma campa identificada e para muitos continuou por muito tempo a possibilidade de ainda estarem vivos. Mas a esperança de encontrar vivos os desaparecidos depressa terminou e ficou a obrigação de encontrar um lugar onde se pudessem honrar todos os mortos. O luto obrigava a encontrar um lugar de peregrinação.

A situação não era apenas uma necessidade moral ou religiosa, existiam milhares de corpos espalhados pelos campos de batalha e era necessário encontrar um lugar digno para os repousar.

 

As soluções tomadas pelos Governos mostra em muito a cultura de cada Nação e a sua capacidade para recordar o seu passado.

Em 1918 existiam milhares de cemitérios improvisados no Norte de França e na Flandres, com milhões de corpos enterrados. Em 1915 o Governo  francês decidiu criar um vasto conjunto de cemitérios militares para enterrar os soldados. Em 1916 o governo Britânico decide separar as campas dos seus soldados e inicia cemitérios próprios, no entanto, com poucas excepções, ninguém voltou para a Grã-Bretanha.

 

As Campas na Zona Proibida

 

Jaime Cortesão nas suas memórias de guerra (3 Março 1918) relata o que viu quando chegou junto da zona proibida, com uma ideia muito concreta: "... a zona de guerra é uma estrada única ladeada de cemitérios...".

 

Os postes com letreiros vermelhos, junto aos caminhos, a dizer "Danger" eram inúteis, a quantidade de cruzes espalhadas junto aos caminhos eram um sinal mais que suficiente para se perceber o perigo.

 

Na retaguarda, nos cemitérios civis encontravam-se alguns soldados enterrados em covas térreas e laterais, fora das ruas principais onde se encontravam as campas elegantes e túmulos de família. Aproximando-nos da frente apareciam os cemitérios militares, autenticas campas rasas, com pequenas cruzes todas iguais, numa imagem de formatura e de espírito militar mesmo após a morte. Depois seguem-se os túmulos que se encontram espalhados e que se encontram no local onde o combatente tombou. São campas ao acaso, junto aos caminhos, com as suas cruzes à cabeceira, onde algumas têm o epíteto "desconhecido". São situações onde alguém abriu uma cova e enterrou um cadáver, onde muitas vezes a única identificação é um capacete ou um boné sobre a cruz.   

 

 

Alguns cemitérios civis, na zona de guerra, foram danificados pela metralha e bombardeamentos até ao nível dos corpos dos cadáveres. Foi o que aconteceu aos cemitérios de Richebourg, St. Waast e Richebourg.  Em St. Waast, anteriormente o nome duma aldeia francesa, em 1918, não apresentava uma única casa de pé e o cemitério estava destruído, com as tampas de mármore, as pedras dos epitáfios, os anjos de cálice, as cruzes e as coroas partidas. Tudo estava revolvido, deitado fora, amassado em pedaços e estoiraram os caixões. Com a chuva a ensopar tudo, viam-se os mortos a nadar numa água verde e amarelada.

 

Os bombardeamentos com projecteis pesados ao caírem pulverizavam tudo, formando grandes poços, que se enchiam de água e pedaços de cadáveres apodrecidos, numa loucura estranha que arranca os mortos ao sossego do túmulo.

 

Jaime Cortesão sita Padre António Vieira na sua caracterização da guerra: "O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor... até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro." e acrescentou: "...e os próprios mortos nas suas covas não têm seguro o sono eterno."

 

Em Dixmude houve combates dentro do cemitério. As granadas de artilharia ao rebentarem fizeram saltar para fora dos caixões os mortos desfazendo-os. No fim dos combates haviam soldados feridos com esquírolas de ossos dos mortos.

 

Existiam cemitérios portugueses espalhados por todo o nossos sector, desde as trincheiras até Calais e Étapies. Onde existia uma ambulância ou um hospital, existia portugueses no cemitério. Em 1918 existiam portugueses enterrados, entre outros locais, em Pont-du-Hem, Le Touret e Vieille Chapelle onde estavam pelo menos duzentos que caíram a combater. Pertencem ao "Batalhão dos Eleitos" que ocupam as trincheiras eternas. As suas feridas sangram ainda e eles continuam a bater-se, batem-se ali para sempre, além da morte, pela sua Pátria6.

 

 

 

Os Cemitérios Militares

A criação de cemitérios para os soldados franceses mortos em combate foi uma questão complicada. De início começaram por utilizar espaços em cemitérios civis junto à zona de guerra, mas colocou-se de imediato a questão do espaço ocupado e entidades administrativas locais começaram a pedir pediam contrapartidas. Os mortos na zona de combate eram enterrados nos cemitérios civis locais, em cemitérios improvisados junto à zona de combate, e os que morriam nos hospitais atrás das linhas de combate eram enviados para cemitérios nas localidades de origem. Esta situação não foi resolvida até ao final da guerra, o que implicou uma distribuição caótica dos mortos.

Esta caos levou a que o povo enlutado exigisse ao governo que permitisse levar os seus familiares para casa, para poderem enterrar os corpos nos seus cemitérios locais. Mas esta situação já se tinha posto desde Outubro de 1914, tendo durante a guerra o governo negado as respectivas autorizações.

Outra situação que se colocou foi dos familiares andarem clandestinos pelos cemitérios e zonas de combate à procura dos seus filhos, numa tentativa desesperada de identificar as campas. No entanto, existiam formas de "contornar" as restrições e exumar e levar o corpo do familiar morto de volta para casa a troco de elevadas quantias. Este tipo de actividade prolongou-se para além da data do Armistício.

Jaime Cortesão nas suas memórias conta que teve conhecimento de uma francesa, que morava em Senechal Farm, em 1918, quando soube que o marido morto a combater estava num certo cemitério militar, foi lá, fê-lo desenterrar e depois trouxe-o consigo5.

Poucos dias após o fim da guerra que, em 24 de Novembro de 1918, é criada a Comissão para os Cemitérios Militares, presidida pelo General Castelnau, também um enlutado. A ideia foi de criar reagrupar os soldados mortos que se encontravam dispersos por cemitérios e e de os reunir em cemitérios militares. Para isso o governo decretou que durante um período de três anos não poderia haver exumações e enterros privados. No entanto a questão não foi pacífica mesmo ao nível das chefias militares, variando entre a posição oficial da Comissão e a ideia que os soldados mortos deveriam ficar onde caíram em combate, numa nostalgia mítica de que eles morreram por aquela terra, que esta ficou sacralizada pelo seu sacrifício e que um dia o local se tornaria uma verde floresta sagrada, local de peregrinação para todos.    

A ideia de criar cemitérios militares não foi o que encontrou maior oposição, mas sim os três anos de espera, que levantou o nível emocional a situação de vir a repetir a "crueldade" de um novo funeral, passado esse tempo.

O debate manteve-se empolgado sendo defendido por uns que que consideravam que os soldados deveriam ficar onde combateram, junto dos seus camaradas, evocando a continuidade da batalha para a eternidade, como um exército de heróis adormecidos e com a intenção criar um local de homenagem, que deveria de ser visitado anualmente, convictos de que seria preferível assim do que dispersar os corpos dos soldados caídos por cemitérios locais, onde passada uma geração seriam esquecidos. Por outro lado, era defendido que o dever já tinha sido cumprido e que era o momento dos soldados caídos regressaram a casa, "desmobilização dos mortos", para descansarem junto dos seus antepassados e para que não ficassem eternamente condenados ao tormento da guerra. 

Para a República francesa, que uma década antes tinha cortado relações com a Igreja Católica, a criação de cemitérios militares era entendido como a criação de monumentos cívicos sacralizados pelo sacrifício dos soldados cidadãos, enquanto que a "desmobilização dos mortos" era vista como um movimento católico. Houve ainda algumas referências a que a intransigência em não permitir o regresso dos mortos estaria na incompreensão de alguns funcionários do Ministério da Guerra que, sendo judeus, não compreendiam o culto dos mortos.

No entanto, para aqueles com meios o regresso dos parentes mortos continuou por via ilegal, enfurecendo os militares e a população pobre. Em 28 de Setembro de 1920, o Governo francês desistiu da opção única de cemitérios militares e permitiu que as famílias reclamassem os seus parentes, ficando as despesas por conta do Estado.  Em 1921, 39.000 mortos foram entregues às famílias e em 1922 foram efectuados 265.425 pedidos de transferência. No Verão de 1922, cerca de 300.000 mortos tinham regressado a casa e 700.000 mortos do 1.000.0000 de mortos franceses identificados ficaram em cemitérios militares. Em 1923, os responsáveis militares pelo processo de exumação e entrega dos corpos aos familiares deram por terminado o trabalho.

Nem tudo foi fácil, ainda houve uma disputa entre quem tinha direito de reclamar os corpos, os pais ou as viúvas. Os pais justificavam a sua pretensão pela ligação familiar que não podia ser interrompida, pelo que tinham direito de precedência e as viúvas o contrário. Os país ganharam.

Os cemitérios militares ficaram disseminados pela França, Bélgica, África e Médio Oriente, mas principalmente na zona da Flandres. Os alemães que perderam a guerra não tiveram direito a recolher os seus mortos, os americanos recolheram todos os seus mortos e leram-nos para casa e os ingleses, considerando que não era justo que os não identificados ficassem em França decidiu que nenhum regressaria. A Inglaterra em vez do gesto simbólico de fazer regressar os soldados caídos, em 1920 fez enterrar um soldado desconhecido na Abadia de Westminster em Londres e um outro debaixo do Arco do Triunfo em Paris.

Em 1921 idêntica cerimónia aconteceu na América, Itália, Bélgica e Portugal. Posteriormente outros países seguiram o procedimento criando um túmulo nacional que representa os seus soldados desconhecidos, como no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia. 

Esta questão para os alemães foi mais complexa, pois não houve consenso sobre a existência de um local que centraliza-se a memória dos soldados caídos em combate, tanto por não haver um consenso nacional sobre a origem da derrota, como a dificuldade de determinar o local para a colocação do soldado desconhecido alemão, Berlim, Tannanberg ou Munique.

A comemoração da memória de guerra foi uma preocupação de todos logo após o fim do conflito. A necessidade de trazer os mortos para casa e de os colocar num local simbólico também era uma das primeiras preocupações. Mas o caos dos campos de batalha obrigaram a um acção metódica de procura dos mortos, que em muitas situações simplesmente desapareceram dada a violência das explosões1.

Mais de metade dos mortos que morreram em acção não ficavam em estado de serem identificados, mesmo a recolha dos restos mortais dispersos pelo campo de batalha, ou mesmo das chapas de identificação, era muito difícil e perigoso. 

 

O Luto

A dor é um estado de espírito e a perda é uma condição, que só é ultrapassada pelo luto, um conjunto de actos que os sobreviventes expressam a dor e que passa por vários estados de perda. Muitos desses momentos são vividos em família e suportados pela comunidade. A separação dos familiares que partiram para a guerra dos que ficaram amplia este sentido de perda. 

Em todos os países intervenientes na guerra houve um movimento progressivo de entre ajuda, tanto individual como organizado em grupos de suporte às vitimas e familiares, que progressivamente evoluiu de um processo de consolação para um processo de comemoração .

Uns dos primeiros problemas que se colocavam aos familiares era de ter notícias e de localizar os soldados feridos ou mortos. Relativamente ao conhecimento da situação e de como tinha acontecido existia um profundo silêncio relativamente à existência de sofrimento. Isto tanto acontecia em informações recebidas por meios informais ou oficiais. Todos os que tiveram familiares envolvidos na guerra foram de alguma forma vitimas de guerra.

Na pesquisa do destino dos soldados a Cruz Vermelha Internacional  liderou o esforço através voluntários e pesquisadores que procuravam saber do paradeiro dos soldados e que comunicavam a situação aos familiares. O sofrimento pela espera de notícias, ou a ausência  das mesmas era um foco de dor e sofrimento. Foi um trabalho que demonstrou altruísmo e vontade de ajudar os outros. Outras organizações civis e religiosas também se preparam para ajudar e consular as famílias em luto, transformando-se em estruturas de assistência social.

Muitos regressavam mutilados, outros doentes, e precisavam de auxílio por um período prolongado. Estas associações muitas vezes substituíam-se, ou colmatavam insuficiências, na assistência provida pelo Estado. Não era possível chegar às linhas da frente ou aos hospitais de guerra para apoiar os familiares feridos ou moribundos, e mesmo quando se tinha conhecimento da situação a tempo, não era possível chegar à cabeceira do filho, ou do marido, para o apoiar naquele momento final de passagem. Da consolação e apoio às vítimas da guerra para a comemoração da memória foi um pequeno passo.

As acções de auxílio partilhadas com aqueles que se encontravam em luto: pais, viúvas, filhos, amigos, combatentes, mutilados de guerra, jovens e velhos, eram expressas abertamente em cerimónias colectivas. Dias como o do Armistício e o 9 de Abril para Portugal, passaram a ser datas em que as comunidades e associações passaram a relembrar as vítimas. O luto colectivo e a comemoração da memória colectiva eram o único escape para um funeral que nunca aconteceu, ou se aconteceu não foi participado pelos familiares próximos.

Para os portugueses que viviam longe das frentes de combate, França e África, a Cruz Vermelha Portuguesa era o elemento base de comunicação, para tomarem conhecimento sobre os desaparecidos. Com próximo de 100.000 homens mobilizados para a guerra entre 1014 e 1918,  entre a França e África, com aproximadamente 3.000 e 7.000  prisioneiros.

O destino dos soldados em La Lys foi comunicado às famílias oficialmente (????) dias depois. O tempo de comunicação era longo e a situação sobre a verdade do acontecimento, ou mesmo sobre os detalhes só mais tarde chegou ao conhecimento público . Muito foram dados como mortos, mas que na realidade se encontravam prisioneiros. Dar a informação que um soldado se encontrava desaparecido implicava um aumento do desespero entre os familiares, uma vez que existiam muitas situações de erro de identificação dos mortos.

As informação só chegou verdadeiramente através de camaradas regressados ou voluntários de organizações de suporte, que contavam mais pormenorizadamente as situações. Outro problema era as versões contraditórias sobre o desaparecimento de soldados e tanto pior quando no final da guerra não regressaram a casa.

 

Os Mutilados da Guerra

Formaram-se muitos grupos de assistência àqueles cujas vidas ficaram marcadas para sempre: os mutilados, as viúvas e os órfãos. Para muitos foi um processo de recuperação longo ou mesmos clinicamente impossível.  Mas mesmo para aqueles que conseguiram recuperar o suficiente para se integrarem numa actividade produtiva, o problema de reintegração social foi mais complexo.

O apoio do Estado dado às vítimas de guerra foi insuficiente em todas as nações,. Se por um lado o número o enorme número de vítimas implicava custos insustentáveis de reabilitação, outros Estados, como Portugal, o estado da economia também privava a existência de um auxílio adequado. Muitos tiveram de se socorrer dos suas próprias economias, do auxílio de familiares ou mesmo de recorrer à mendicidade para sobrevier.

Muitos dos soldados feridos e com doenças contraídas durante a guerra nos anos seguintes ao fim da guerra, fazendo com que as famílias continuassem de luto por muitos mais anos, devido à Grande Guerra. Foi uma situação não quantificada que passou despercebida do grande público e que marcou em privado muitas famílias.

À insuficiência de iniciativas dos Estados beligerantes, contrabalançou as iniciativas privadas e colectivas da sociedade civil.

Em França nos finais de 1917 existiam cerca de 125 sociedades que representavam mais de 125.000 feridos e mutilados de guerra, e que nos anos seguintes as sociedades aumentaram para cerca de um milhar, representando milhões de feridos, mutilados e apoiantes das acções de solidariedade. Muitas das sociedades foram criadas para apoio local, em cidades e vilas, entre o espírito de solidariedade e para a continuidade do espírito de camaradagem das trincheiras. Com o passar dos tempos os apoios sociais foram-se esmorecendo e o Estado passou a recordar nas comemorações, mais a memória da guerra do que das vítimas. Com o passar dos anos o auxílio às vítimas centrou-se principalmente em associações civis e religiosas, e a ajuda transformou-se de um apoio social, em caridade. Não foi só em Portugal que esta situação aconteceu, foi transversal  na Europa, desde a Alemanha e Áustria até França e Grã-Bretanha. E 1923 foi estimado pela "International Labour Organization" a existência de 10 milhões de homens mutilados de guerra. 

Cerca de um terço dos 9 milhões de militares mortos terão deixado viúvas para trás, ou seja cerca de 3 milhões e aproximadamente 6 milhões de órfãos. Se na época a viuvez significava pobreza, no final da guerra os números tornavam impossível o auxílio. Em França e Grã-Bretanha a pensão por viuvez demonstrou-se um meio de auxílio muito importante para a subsistência destas pessoas, apesar de ser muito inferior a um salário.Na Alemanha existiam cerca de 525.000 viúvas e perto de 1 milhão de órfãos, em 1920.

Assim, o vazio deixado entre o auxílio do Estado e as necessidades mínimas de sobrevivência, foi minorado pela acção dos grupos e associações de apoio social. Não pode ser esquecido o apoio dos ex-combatentes na criação destas iniciativas.  O esforço associativo representou o trabalho de muitos cidadãos para ajudar os soldados e as suas famílias, durante o período de guerra e na reintegração dos militares na vida civil no pós-guerra.

O sofrimento e a comemorações dedicadas à memória da guerra estão interligadas. Os monumentos memoriais são símbolos colectivos, mas existem outros símbolos mais íntimos, como fotos de familiares mortos com dedicatórias escritas, ou cartas de soldados que escreveram às famílias dos seus camaradas mortos, dando condolências e partilhando memórias sobre aquele momento2.

 

O Renascimento do Espiritualismo

A Grande Guerra despoletou o renascimento do espiritualismo. Os soldados evocavam os antepassados em seu auxílio. Este pensamento místico começou a ser utilizado, também, para a evocação do regresso dos mortos para auxiliar os vivos em combate a para ultrapassar os seus traumas de guerra. Durante o período de guerra, até mesmo a Igreja Católica utilizou a Fé, por exemplo o Milagre de Fátima, para acompanhar as necessidades espirituais da população. No sofrimento o espiritualismo religioso auxiliava as vítimas a compreender as atrocidades da guerra e os sinais divinos que se lhes deparavam nos campos de batalha, por  exemplo os Cristos das trincheiras.

Psicologicamente o espiritualismo podia ser visto como uma negação da morte. Independentemente das convicções individuais dos soldados, muitos aceitavam o sobrenatural. A frente de combate estava impregnada de fenómenos psicológicos, derivados da violência envolvente que trazia ao cimo toda a espécie de crença popular. O soldado tornou-se supersticioso e daqui surgiram muitas histórias, lendas e sinais proféticos que se propagaram entre todos os soldados e chegaram mesmo aos seus familiares na Pátria. A "arte de guerra" que se desenvolveu através da reutilização de objectos militares para a construção de objectos religiosos, demonstra esse nível de espiritualismo religioso individual e, também, colectivo.

Em Portugal nasceu o culto de Nossa Senhora de Fátima, logo depois do aparecimento da Virgem Maria. Esta veneração da Virgem foi uma consequência do desespero popular, que circundava a guerra e de uma partilha do sofrimento e da esperança de fim da guerra que era partilhada com os soldados a combater em França. Em França observo-se situações de aparições em que envolviam a imagem de Joana d'Arc. Existem dezenas de historias de milagres individuais registados nos campos de batalha ao longo da Grande Guerra. Também existem relatos de premonições, tanto de familiares em relação à morte do filho, ou marido, como de soldados em relação à sua morte ou de camaradas.

A ligação entre o "espiritualismo religioso" e a "experiência de guerra" é evidente na arte memorial comemorativa dos monumentos à Grande Guerra. Muito marcante em França, a Grã-Bretanha ,devido à sua posição religiosa anglicana, apresenta uma estética mais linear e integrada na paisagem. Portugal seguiu uma estética republicana entre o romantismo e a separação do Estado da Igreja.

O período de 1914-18 foi o apogeu do espiritualismo religioso e profano na Europa, mas por volta de 1930 já tinha passado e regressado a valores residuais na sociedade, mas culturalmente e sobretudo na pintura influenciou profundamente o surrealismo3.

 

 

Os Monumentos Memoriais e o Processo de Luto

A necessidade de entender as razões da Grande Guerra, e no caso nacional o da intervenção na Europa, começaram assim se deu entrada no conflito. Os memoriais, sejam monumentais, esculturas ou simples placas, encontram-se espalhados por vilas e cidades de todo o Mundo, para que todos se recordem dos sacrifícios que aconteceram entre 1914 e 1918.

Hoje as comemorações são diferentes de país para país, dependendo da sua intervenção na guerra, cultura e religiosidade. Em França os memoriais são maioritariamente "monumentos aos mortos", inclusive o monumento português que se encontra em Nord-Pas de Calais, que os coloca numa lógica de sofrimento e sacrifício. Na Grã-Bretanha e outro países anglo-saxãos, incluindo a Alemanha e a Áustria os monumentos são menos representativos do sofrimento, mais ambíguos, representando mais a guerra como acontecimento histórico, do que o sofrimento individual. Aquilo que os nossos antepassados sentiam quando viam os monumentos é diferente daquilo que hoje, década passadas e sem um vivência directa da guerra vimos nesses mesmos monumentos. No entanto, têm em comum uma tradição arquitectónica de esculturas publicas, que se inserem na definição cultural de cada nação e representam sempre um símbolo de orgulho nacional.

Actualmente é feita uma interpretação política da estética dos monumentos, tentando interpretá-los com base em ideários monárquicos, republicanas , nacionalistas, fascistas, comunistas ou democráticos, ou ainda, como monumentos à "guerra". Para os contemporâneos tinham um significado diferente, uma vez que eram interpretados como símbolos das perdas pessoais (filhos, maridos e amigos) e representavam um reconhecimento do Estado perante o sacrifício individual e a partilha do luto. Eram locais de partilha colectiva da memória de guerra.   

Alguns monumentos foram construídos, ainda, durante o conflito, como o monumento que se encontra no cemitério de Nossa Senhora das Angústias, na Madeira, inaugurado a 3 de Dezembro de 1917. mas a maior parte foi após o Armistício.

Os monumentos memoriais estão colocados em três tipos de espaços. Durante o período de guerra eram colocados junto dos locais de combate, no pós guerra passaram a se colocados locais públicos das vilas e cidades, e por último em cemitérios. Actualmente em Portugal existem casos em que os monumentos que foram colocados em cemitérios foram transferidos para praças públicas, como o monumento aos combatentes da Grande Guerra em Castelo Branco.

Os monumentos colocados em locais públicos têm em comum um sentido patriótico, demonstrando a universalidade do sacrifício, o sentido de dever nacional e demonstram o valor dos soldados pertencentes à comunidade. Os monumentos em cemitérios são mais restritos e ligados ao sacrifício da comunidade em relação à Pátria, como uma demonstração de dever sagrado, ligado à religiosidade da comunidade. Só entendendo uma alteração da religiosidade de uma comunidade e a perda da ligação directa e afectiva da sociedade com os seus mortos, visto se terem passado mais de 90 anos do Armistício, se compreende a transferência de local monumento que se encontrava num cemitério para uma praça pública.  

A utilização da cultura popular como forma de mobilização da nação para o esforço de guerra foi utilizado por todos os intervenientes no conflito. Cada nação desenvolveu a sua própria linguagem, mas houve um factor comum, o qual tendeu a colocar os combatentes de 1914-18, como os homens que preservavam as virtudes e guerreiras.  Os países celebraram os seus heróis do passado, do exército ou da marinha, dentro das tradições nacionais, e para aqueles em que não existiam figuras tão marcantes na história, como a Austrália e  Nova Zelândia, celebraram de forma geral e simbólica o soldado e o marinheiro comum, como a ligação ao passado militar. França na sua tradição gaulesa celebrou desde o soldado ao grande comandante.

Imagens comemorativas  eram vendidas em grandes quantidades, tanto em artefactos como em cartazes. Também foram produzidos muitos objectos domésticos comemorativos, entre muitos destaca-se as "cruzes comemorativos" alemães, cosidas à roupa, toalhas e mantas, ou bordadas com pregos sobre uma superfície de madeira.  Mas esta industria comemorativa foi transversal à França e à Inglaterra. Também foram produzidos materiais para cerimonias públicas, tipo pronto a usar.  Na Alemanha a Cruz de Guerra foi um dos símbolos mais usados. Eram também muito usados símbolos como a Cruz, muito mais em países protestantes do que católicos, uma vez que a iconografia protestante limitava a utilização de outros símbolos de fé. Ressalve-se que a cultura popular alemã imperial era essencialmente protestante. Ao longo da guerra os alemães comemoravam a batalha de Tannenberg, Agosto de 1914, e centravam a personificação da vitória no seu herói nacional Paul von Hindenburg.

Os rituais comemorativos estavam cercados pela lenda guerreira dos povos, e uma tradição nacional, tendendo a fazer um apelo ao sacrifício dos soldados e à dívida dos cidadãos perante o seu sacrifício supremo, a morte.

Após o fim da guerra as comemorações deixaram de ter um sentido mobilizador, perdendo parte da linguagem referente ao nacionalismo patriótico e passaram a tem uma linguagem mais virada para a desolação, sacrifício, perda e luto. A industria comemorativa transforma-se e os objectos produzidos deixam de ser mobilizadores para passarem a ser de consolo e suporte à perda humana. A Igreja, as associações de apoio a ex-combatentes e as comunidades locais passam a dedicar-se a cerimónias públicas de lembrança do Armistício e muitos dos monumentos são construídos por contribuição pública.

Muitos dos memoriais foram construídos com características religiosas e colocados em locais como pátios de igrejas e cemitérios, mas também em praças e jardins públicos. A separação do Estado da Igreja, tanto em França como em Portugal, assim como o anglicanismo britânico, levaram à sobriedade iconografia dos monumentos memorais da Grande Guerra. A arte monumental apresenta-se na fronteira entre o cristianismo e o paganismo, numa quase religiosidade, dentro dos padrões da arte funerária do início do século XX.

A Cruz como representação do sacrifício máximo para o Cristianismo, foi um dos símbolos mais utilizados para a representação do sofrimento. A escultura “Canada’s Golgotha” de Derwent Wood, foi um dos extremos da representação da Cruz, quando representou o mito da crucificação de um soldado do Canadá por topas alemãs.

Um dos meios utilizados para difundir a ideia de sofrimentos foi a fotografia de Cristo na Cruz, em altares de igrejas destruídas ou em nichos espalhados pelos campos de batalha. Imunes às balas desafiavam a morte. Uma destas imagens encontra-se no Mosteiro da Batalha, na sala do Capítulo, a encimar o Túmulo do Soldado Desconhecido.

As comemorações da Grande Guerra foram, e são, uma expressam de esperança. Construídos em locais visíveis são o primeiro passo para o "Culto dos Mortos", numa visão sobre a reconstrução nacional e de legitimação do luto individual e da comunidade. Com forte valor simbólico foi aproveitado politicamente pelos fascistas italianos e alemães, no entanto, a principal função era de desconstruir a morte, o horror, o trauma e o sofrimento individual, produzindo o efeito de um funeral oficial das vítimas de guerra, para a comunidade local onde se inseria o monumento. Cada nação teve a sua própria forma de expressão dos sentimentos e cada um ficou represento o caracter da população local e a sua sensibilidade.

A existência física do monumento memorial e a possibilidade de tocar os nomes daqueles que morreram pela Pátria, é um importante e faz parte do ritual de separação  que os envolve. Muitas fotografias da época mostram pessoas a tocar os monumentos, num gesto que os liga aos lugares é aos tempos de combate. Luto e melancolia são a razão destes gestos, de acordo com Freud(1917), e este ritual é libertador e permite o retorno à normalidade do dia a dia. Os monumentos transformam o sentido de perda palpável e generaliza a dor. Os monumentos ajudam a sociedade a demarcar o limite da dor e marcam um um  ponto final na morte.

Os monumentos memórias estabelecem o limite entre os mortos e os vivos, e representam a arte do esquecimento. São um marco no ritual de passagem e por isso estão ornamentados de símbolos religiosos, pagãos e profanos. Pela serenidade que os cemitérios transmitem a arte memorial é nestes locais mais abstracta e austera. Independentemente de terem sido esculpidos por artistas tradicionalistas ou modernistas existiu sempre a preocupação de expressar a dívida dos vivos perante os mortos.  Os monumentos memoriais e os cemitérios de guerra são um pequeno tributo perante aqueles que viveram e morreram durante a maior guerra do século XX4.

 

 

 

 

 

Notas

  1. 1. Winter(2005), pp.15-28.
  2. 2. Winter(2005), pp.29-53.
  3. 3. Winter(2005), pp.54-77.
  4. 4. Winter(2005), pp.78-116.
  5. 5. Cortesão(1919), p. 152.
  6. 6. Cortesão(1919), p. 149-156.

 

 

Links

http://www.dailymotion.com/video/xc3xb1_j-accuse_shortfilms

 

 

Bibliografia
  • Rosas, Fernando e Maria Fernanda Rolo, coordenação(2010), "História da Primeira República Portuguesa",2ªed., Lisboa, Tinta da China. (ISBN: 978-972-8955-98-4)
  • Winter, Jay and Antoine Prost, (2005), "The Great War in History, Debates and Controversies, 1914 to the Present", Cambridge, 1ª ed., Cambridge Universitu Press, (ISBN: 978-0-521-85083-4)
  • Cortesão, Jaime (1919), "Memórias da Grande Guerra, (1916-1919)", Porto, 3ª ed., Edição da Renascença Portuguesa.

 

 

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