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O Sentido do
Sacrifício
No filme
"J'accuse" de Abel Gance, de 1918-19, é focado pela primeira vez em
cinema o regresso dos mortos. É uma visão apocalíptica onde se aborda o
sentido do sacrifício humano e a inutilidade do mesmo. Os mortos
regressam à terra natal e vêm que a vida continua e o espaço vazio
deixado pelas suas mortes é de imediata reocupado.
A cena final dos mortos vivos que
caminham, como zumbis, em direcção a casa tem um sentido dramático
acrescido, tanto mais que foi filmada com figurantes dispensados pelo
exército francês em 1918, antes do armistício, dos quais muitos vieram a
morrer posteriormente em combate. Os mortos são as figuras centrais do
pós-guerra.
Como relatar as mortes, como
transcender a brutal separação, como descrever a crueldade, são dos
dilemas que os artistas, políticos, soldados e os cidadãos comuns têm de
compreender e retractar, factos que modelaram a cultura europeia depois
da Grande Guerra. Verificou-se um impacto directo entre as consequências
da guerra e a transformação das correntes modernistas europeias que
tinham nascido no início do século.
Verifica-se uma transformação da
interpretação do sacrifício humano na guerra como um "melodrama", do
período anterior à Grande Guerra, para a interpretação do sacrifício
humano na guerra como um "mito", com uma evolução interpretava ao nível
literário e plástico. O "mito " redefine os cânones do modernismo e as
experiências artísticas de avant-garde não colidem com o
tradicional e o naturalismo, transforma-os em simples rebeldes e
inovadores dentro de uma evolução simultaneamente natural, cultural e
tecnológica.
J'accuse por Leucit
A morte "em combate" com o final
da guerra foi substituída pela morte causada pela pneumónica (gripe
espanhola) e a frente de combate (front) limitada às fronteira de
batalha entre os beligerantes, alastrou-se por todos os territórios
nacionais. há que acrescentar o regresso dos mutilados de guerra,
imagens vivas do desastre da guerra.
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Os Soldados
Desconhecidos O fim da
guerra converte-se na "Festa da Vitória" e no "Luto Nacional" com o
regresso dos soldados de França, uns vivos, os mutilados e outros
mortos. O momento transformou-se por toda a Europa num momento de luto e
Portugal não ficou à parte. Começou então a frenética procura pelos
desaparecidos, milhares de corpos não identificados encontravam-se
espalhados por cemitérios improvisados e campas improvisadas ao logo dos
milhares de quilómetros da linha da frente. A identificação e
localização de familiares e amigos tornou-se uma tarefa impossível.
Milhares de soldados não tiveram direito a uma campa identificada e para
muitos continuou por muito tempo a possibilidade de ainda estarem vivos.
Mas a esperança de encontrar vivos os desaparecidos depressa terminou e
ficou a obrigação de encontrar um lugar onde se pudessem honrar todos os
mortos. O luto obrigava a encontrar um lugar de peregrinação.
A situação não era apenas uma
necessidade moral ou religiosa, existiam milhares de corpos espalhados
pelos campos de batalha e era necessário encontrar um lugar digno para
os repousar.
As soluções tomadas pelos Governos
mostra em muito a cultura de cada Nação e a sua capacidade para recordar
o seu passado.
Em 1918 existiam milhares de
cemitérios improvisados no Norte de França e na Flandres, com milhões de
corpos enterrados. Em 1915 o Governo francês decidiu criar um
vasto conjunto de cemitérios militares para enterrar os soldados. Em
1916 o governo Britânico decide separar as campas dos seus soldados e
inicia cemitérios próprios, no entanto, com poucas excepções, ninguém
voltou para a Grã-Bretanha.
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As Campas na Zona
Proibida
Jaime Cortesão nas
suas memórias de guerra (3 Março 1918) relata o que viu quando chegou
junto da zona proibida, com uma ideia muito concreta: "... a zona de
guerra é uma estrada única ladeada de cemitérios...".
Os postes com
letreiros vermelhos, junto aos caminhos, a dizer "Danger" eram inúteis,
a quantidade de cruzes espalhadas junto aos caminhos eram um sinal mais
que suficiente para se perceber o perigo.
Na retaguarda, nos cemitérios civis
encontravam-se alguns soldados enterrados em covas térreas e laterais,
fora das ruas principais onde se encontravam as campas elegantes e
túmulos de família. Aproximando-nos da frente apareciam os cemitérios
militares, autenticas campas rasas, com pequenas cruzes todas iguais,
numa imagem de formatura e de espírito militar mesmo após a morte.
Depois seguem-se os túmulos que se encontram espalhados e que se
encontram no local onde o combatente tombou. São campas ao acaso, junto
aos caminhos, com as suas cruzes à cabeceira, onde algumas têm o epíteto
"desconhecido". São situações onde alguém abriu uma cova
e enterrou um cadáver, onde muitas vezes a única identificação é um
capacete ou um boné sobre a cruz.
Alguns cemitérios
civis, na zona de guerra, foram danificados pela metralha e
bombardeamentos até ao nível dos corpos dos cadáveres. Foi o que
aconteceu aos cemitérios de Richebourg, St. Waast e Richebourg. Em
St. Waast, anteriormente o nome duma aldeia francesa, em 1918, não
apresentava uma única casa de pé e o cemitério estava destruído, com as
tampas de mármore, as pedras dos epitáfios, os anjos de cálice, as
cruzes e as coroas partidas. Tudo estava revolvido, deitado fora,
amassado em pedaços e estoiraram os caixões. Com a chuva a ensopar tudo,
viam-se os mortos a nadar numa água verde e amarelada.
Os bombardeamentos com projecteis
pesados ao caírem pulverizavam tudo, formando grandes poços, que se
enchiam de água e pedaços de cadáveres apodrecidos, numa loucura
estranha que arranca os mortos ao sossego do túmulo.
Jaime Cortesão sita
Padre António Vieira na sua caracterização da guerra: "O pai não tem
seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro
o seu suor... até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro." e
acrescentou: "...e os próprios mortos nas suas covas não têm seguro o
sono eterno."
Em Dixmude houve
combates dentro do cemitério. As granadas de artilharia ao rebentarem
fizeram saltar para fora dos caixões os mortos desfazendo-os. No fim dos
combates haviam soldados feridos com esquírolas de ossos dos mortos.
Existiam cemitérios
portugueses espalhados por todo o nossos sector, desde as trincheiras
até Calais e Étapies. Onde existia uma ambulância ou um hospital,
existia portugueses no cemitério. Em 1918 existiam portugueses
enterrados, entre outros locais, em Pont-du-Hem, Le Touret e Vieille
Chapelle onde estavam pelo menos duzentos que caíram a combater.
Pertencem ao "Batalhão dos Eleitos" que ocupam as trincheiras eternas.
As suas feridas sangram ainda e eles continuam a bater-se, batem-se ali
para sempre, além da morte, pela sua Pátria6.
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Os Cemitérios
Militares A criação de
cemitérios para os soldados franceses mortos em combate foi uma questão
complicada. De início começaram por utilizar espaços em cemitérios civis
junto à zona de guerra, mas colocou-se de imediato a questão do espaço
ocupado e entidades administrativas locais começaram a pedir pediam
contrapartidas. Os mortos na zona de combate eram enterrados nos
cemitérios civis locais, em cemitérios improvisados junto à zona de
combate, e os que morriam nos hospitais atrás das linhas de combate eram
enviados para cemitérios nas localidades de origem. Esta situação não
foi resolvida até ao final da guerra, o que implicou uma distribuição
caótica dos mortos.
Esta caos levou a que o povo
enlutado exigisse ao governo que permitisse levar os seus familiares
para casa, para poderem enterrar os corpos nos seus cemitérios locais.
Mas esta situação já se tinha posto desde Outubro de 1914, tendo durante
a guerra o governo negado as respectivas autorizações.
Outra situação que se colocou foi
dos familiares andarem clandestinos pelos cemitérios e zonas de combate
à procura dos seus filhos, numa tentativa desesperada de identificar as
campas. No entanto, existiam formas de "contornar" as restrições e
exumar e levar o corpo do familiar morto de volta para casa a troco de
elevadas quantias. Este tipo de actividade prolongou-se para além da
data do Armistício.
Jaime Cortesão nas
suas memórias conta que teve conhecimento de uma francesa, que morava em
Senechal Farm, em 1918, quando soube que o marido morto a combater
estava num certo cemitério militar, foi lá, fê-lo desenterrar e depois
trouxe-o consigo5.
Poucos dias após o fim da guerra
que, em 24 de Novembro de 1918, é criada a Comissão para os Cemitérios
Militares, presidida pelo General Castelnau, também um enlutado. A ideia
foi de criar reagrupar os soldados mortos que se encontravam dispersos
por cemitérios e e de os reunir em cemitérios militares. Para isso o
governo decretou que durante um período de três anos não poderia haver
exumações e enterros privados. No entanto a questão não foi pacífica
mesmo ao nível das chefias militares, variando entre a posição oficial
da Comissão e a ideia que os soldados mortos deveriam ficar onde caíram
em combate, numa nostalgia mítica de que eles morreram por aquela terra,
que esta ficou sacralizada pelo seu sacrifício e que um dia o local se
tornaria uma verde floresta sagrada, local de peregrinação para todos.
A ideia de criar cemitérios
militares não foi o que encontrou maior oposição, mas sim os três anos
de espera, que levantou o nível emocional a situação de vir a repetir a
"crueldade" de um novo funeral, passado esse tempo.
O debate manteve-se empolgado
sendo defendido por uns que que consideravam que os soldados deveriam
ficar onde combateram, junto dos seus camaradas, evocando a continuidade
da batalha para a eternidade, como um exército de heróis adormecidos e
com a intenção criar um local de homenagem, que deveria de ser visitado
anualmente, convictos de que seria preferível assim do que dispersar os
corpos dos soldados caídos por cemitérios locais, onde passada uma
geração seriam esquecidos. Por outro lado, era defendido que o dever já
tinha sido cumprido e que era o momento dos soldados caídos regressaram
a casa, "desmobilização dos mortos", para descansarem junto dos seus
antepassados e para que não ficassem eternamente condenados ao tormento
da guerra.
Para a República francesa, que uma
década antes tinha cortado relações com a Igreja Católica, a criação de
cemitérios militares era entendido como a criação de monumentos cívicos
sacralizados pelo sacrifício dos soldados cidadãos, enquanto que a
"desmobilização dos mortos" era vista como um movimento católico. Houve
ainda algumas referências a que a intransigência em não permitir o
regresso dos mortos estaria na incompreensão de alguns funcionários do
Ministério da Guerra que, sendo judeus, não compreendiam o culto dos
mortos.
No entanto, para aqueles com meios
o regresso dos parentes mortos continuou por via ilegal, enfurecendo os
militares e a população pobre. Em 28 de Setembro de 1920, o Governo
francês desistiu da opção única de cemitérios militares e permitiu que
as famílias reclamassem os seus parentes, ficando as despesas por conta
do Estado. Em 1921, 39.000 mortos foram entregues às famílias e em
1922 foram efectuados 265.425 pedidos de transferência. No Verão de
1922, cerca de 300.000 mortos tinham regressado a casa e 700.000 mortos
do 1.000.0000 de mortos franceses identificados ficaram em cemitérios
militares. Em 1923, os responsáveis militares pelo processo de exumação
e entrega dos corpos aos familiares deram por terminado o trabalho.
Nem tudo foi fácil, ainda houve
uma disputa entre quem tinha direito de reclamar os corpos, os pais ou
as viúvas. Os pais justificavam a sua pretensão pela ligação familiar
que não podia ser interrompida, pelo que tinham direito de precedência e
as viúvas o contrário. Os país ganharam.
Os cemitérios militares ficaram
disseminados pela França, Bélgica, África e Médio Oriente, mas
principalmente na zona da Flandres. Os alemães que perderam a guerra não
tiveram direito a recolher os seus mortos, os americanos recolheram
todos os seus mortos e leram-nos para casa e os ingleses, considerando
que não era justo que os não identificados ficassem em França decidiu
que nenhum regressaria. A Inglaterra em vez do gesto simbólico de fazer
regressar os soldados caídos, em 1920 fez enterrar um soldado
desconhecido na Abadia de Westminster em Londres e um outro debaixo do
Arco do Triunfo em Paris.
Em 1921 idêntica cerimónia
aconteceu na América, Itália, Bélgica e Portugal. Posteriormente outros
países seguiram o procedimento criando um túmulo nacional que representa
os seus soldados desconhecidos, como no Canadá, na Austrália e na Nova
Zelândia.
Esta questão para os alemães foi
mais complexa, pois não houve consenso sobre a existência de um local
que centraliza-se a memória dos soldados caídos em combate, tanto por
não haver um consenso nacional sobre a origem da derrota, como a
dificuldade de determinar o local para a colocação do soldado
desconhecido alemão, Berlim, Tannanberg ou Munique.
A comemoração da memória de guerra
foi uma preocupação de todos logo após o fim do conflito. A necessidade
de trazer os mortos para casa e de os colocar num local simbólico também
era uma das primeiras preocupações. Mas o caos dos campos de batalha
obrigaram a um acção metódica de procura dos mortos, que em muitas
situações simplesmente desapareceram dada a violência das explosões1.
Mais de metade dos mortos que
morreram em acção não ficavam em estado de serem identificados, mesmo a
recolha dos restos mortais dispersos pelo campo de batalha, ou mesmo das
chapas de identificação, era muito difícil e perigoso.
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O Luto
A dor é um estado de espírito e a
perda é uma condição, que só é ultrapassada pelo luto, um conjunto de
actos que os sobreviventes expressam a dor e que passa por vários
estados de perda. Muitos desses momentos são vividos em família e
suportados pela comunidade. A separação dos familiares que partiram para
a guerra dos que ficaram amplia este sentido de perda.
Em todos os países intervenientes
na guerra houve um movimento progressivo de entre ajuda, tanto
individual como organizado em grupos de suporte às vitimas e familiares,
que progressivamente evoluiu de um processo de consolação para um
processo de comemoração .
Uns dos primeiros problemas que se
colocavam aos familiares era de ter notícias e de localizar os soldados
feridos ou mortos. Relativamente ao conhecimento da situação e de como
tinha acontecido existia um profundo silêncio relativamente à existência
de sofrimento. Isto tanto acontecia em informações recebidas por meios
informais ou oficiais. Todos os que tiveram familiares envolvidos na
guerra foram de alguma forma vitimas de guerra.
Na pesquisa do destino dos
soldados a Cruz Vermelha Internacional liderou o esforço através
voluntários e pesquisadores que procuravam saber do paradeiro dos
soldados e que comunicavam a situação aos familiares. O sofrimento pela
espera de notícias, ou a ausência das mesmas era um foco de dor e
sofrimento. Foi um trabalho que demonstrou altruísmo e vontade de ajudar
os outros. Outras organizações civis e religiosas também se preparam
para ajudar e consular as famílias em luto, transformando-se em
estruturas de assistência social.
Muitos regressavam mutilados,
outros doentes, e precisavam de auxílio por um período prolongado. Estas
associações muitas vezes substituíam-se, ou colmatavam insuficiências,
na assistência provida pelo Estado. Não era possível chegar às linhas da
frente ou aos hospitais de guerra para apoiar os familiares feridos ou
moribundos, e mesmo quando se tinha conhecimento da situação a tempo,
não era possível chegar à cabeceira do filho, ou do marido, para o
apoiar naquele momento final de passagem. Da consolação e apoio às
vítimas da guerra para a comemoração da memória foi um pequeno passo.
As acções de auxílio partilhadas
com aqueles que se encontravam em luto: pais, viúvas, filhos, amigos,
combatentes, mutilados de guerra, jovens e velhos, eram expressas
abertamente em cerimónias colectivas. Dias como o do Armistício e o 9 de
Abril para Portugal, passaram a ser datas em que as comunidades e
associações passaram a relembrar as vítimas. O luto colectivo e a
comemoração da memória colectiva eram o único escape para um funeral que
nunca aconteceu, ou se aconteceu não foi participado pelos familiares
próximos.
Para os portugueses que viviam
longe das frentes de combate, França e África, a Cruz Vermelha
Portuguesa era o elemento base de comunicação, para tomarem conhecimento
sobre os desaparecidos. Com próximo de 100.000 homens mobilizados para a
guerra entre 1014 e 1918, entre a França e África, com
aproximadamente 3.000 e 7.000 prisioneiros.
O destino dos soldados em La Lys
foi comunicado às famílias oficialmente (????) dias depois. O tempo de
comunicação era longo e a situação sobre a verdade do acontecimento, ou
mesmo sobre os detalhes só mais tarde chegou ao conhecimento público .
Muito foram dados como mortos, mas que na realidade se encontravam
prisioneiros. Dar a informação que um soldado se encontrava desaparecido
implicava um aumento do desespero entre os familiares, uma vez que
existiam muitas situações de erro de identificação dos mortos.
As informação só chegou
verdadeiramente através de camaradas regressados ou voluntários de
organizações de suporte, que contavam mais pormenorizadamente as
situações. Outro problema era as versões contraditórias sobre o
desaparecimento de soldados e tanto pior quando no final da guerra não
regressaram a casa.
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Os Mutilados da
Guerra Formaram-se
muitos grupos de assistência àqueles cujas vidas ficaram marcadas para
sempre: os mutilados, as viúvas e os órfãos. Para muitos foi um processo
de recuperação longo ou mesmos clinicamente impossível. Mas mesmo
para aqueles que conseguiram recuperar o suficiente para se integrarem
numa actividade produtiva, o problema de reintegração social foi mais
complexo.
O apoio do Estado dado às vítimas
de guerra foi insuficiente em todas as nações,. Se por um lado o número
o enorme número de vítimas implicava custos insustentáveis de
reabilitação, outros Estados, como Portugal, o estado da economia também
privava a existência de um auxílio adequado. Muitos tiveram de se
socorrer dos suas próprias economias, do auxílio de familiares ou mesmo
de recorrer à mendicidade para sobrevier.
Muitos dos soldados feridos e com
doenças contraídas durante a guerra nos anos seguintes ao fim da guerra,
fazendo com que as famílias continuassem de luto por muitos mais anos,
devido à Grande Guerra. Foi uma situação não quantificada que passou
despercebida do grande público e que marcou em privado muitas famílias.
À insuficiência de iniciativas dos
Estados beligerantes, contrabalançou as iniciativas privadas e
colectivas da sociedade civil.
Em França nos finais de 1917
existiam cerca de 125 sociedades que representavam mais de 125.000
feridos e mutilados de guerra, e que nos anos seguintes as sociedades
aumentaram para cerca de um milhar, representando milhões de feridos,
mutilados e apoiantes das acções de solidariedade. Muitas das sociedades
foram criadas para apoio local, em cidades e vilas, entre o espírito de
solidariedade e para a continuidade do espírito de camaradagem das
trincheiras. Com o passar dos tempos os apoios sociais foram-se
esmorecendo e o Estado passou a recordar nas comemorações, mais a
memória da guerra do que das vítimas. Com o passar dos anos o auxílio às
vítimas centrou-se principalmente em associações civis e religiosas, e a
ajuda transformou-se de um apoio social, em caridade. Não foi só em
Portugal que esta situação aconteceu, foi transversal na Europa,
desde a Alemanha e Áustria até França e Grã-Bretanha. E 1923 foi
estimado pela "International Labour Organization" a existência de 10
milhões de homens mutilados de guerra.
Cerca de um terço dos 9 milhões de
militares mortos terão deixado viúvas para trás, ou seja cerca de 3
milhões e aproximadamente 6 milhões de órfãos. Se na época a viuvez
significava pobreza, no final da guerra os números tornavam impossível o
auxílio. Em França e Grã-Bretanha a pensão por viuvez demonstrou-se um
meio de auxílio muito importante para a subsistência destas pessoas,
apesar de ser muito inferior a um salário.Na Alemanha existiam cerca de
525.000 viúvas e perto de 1 milhão de órfãos, em 1920.
Assim, o vazio deixado entre o
auxílio do Estado e as necessidades mínimas de sobrevivência, foi
minorado pela acção dos grupos e associações de apoio social. Não pode
ser esquecido o apoio dos ex-combatentes na criação destas iniciativas.
O esforço associativo representou o trabalho de muitos cidadãos para
ajudar os soldados e as suas famílias, durante o período de guerra e na
reintegração dos militares na vida civil no pós-guerra.
O sofrimento e a comemorações
dedicadas à memória da guerra estão interligadas. Os monumentos
memoriais são símbolos colectivos, mas existem outros símbolos mais
íntimos, como fotos de familiares mortos com dedicatórias escritas, ou
cartas de soldados que escreveram às famílias dos seus camaradas mortos,
dando condolências e partilhando memórias sobre aquele momento2.
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O Renascimento do
Espiritualismo A Grande
Guerra despoletou o renascimento do espiritualismo. Os soldados evocavam
os antepassados em seu auxílio. Este pensamento místico começou a ser
utilizado, também, para a evocação do regresso dos mortos para auxiliar
os vivos em combate a para ultrapassar os seus traumas de guerra.
Durante o período de guerra, até mesmo a Igreja Católica utilizou a Fé,
por exemplo o Milagre de Fátima, para acompanhar as necessidades
espirituais da população. No sofrimento o espiritualismo religioso
auxiliava as vítimas a compreender as atrocidades da guerra e os sinais
divinos que se lhes deparavam nos campos de batalha, por exemplo
os Cristos das trincheiras.
Psicologicamente o espiritualismo
podia ser visto como uma negação da morte. Independentemente das
convicções individuais dos soldados, muitos aceitavam o sobrenatural. A
frente de combate estava impregnada de fenómenos psicológicos, derivados
da violência envolvente que trazia ao cimo toda a espécie de crença
popular. O soldado tornou-se supersticioso e daqui surgiram muitas
histórias, lendas e sinais proféticos que se propagaram entre todos os
soldados e chegaram mesmo aos seus familiares na Pátria. A "arte de
guerra" que se desenvolveu através da reutilização de objectos militares
para a construção de objectos religiosos, demonstra esse nível de
espiritualismo religioso individual e, também, colectivo.
Em Portugal nasceu o culto de
Nossa Senhora de Fátima, logo depois do aparecimento da Virgem Maria.
Esta veneração da Virgem foi uma consequência do desespero popular, que
circundava a guerra e de uma partilha do sofrimento e da esperança de
fim da guerra que era partilhada com os soldados a combater em França.
Em França observo-se situações de aparições em que envolviam a imagem de
Joana d'Arc. Existem dezenas de historias de milagres individuais
registados nos campos de batalha ao longo da Grande Guerra. Também
existem relatos de premonições, tanto de familiares em relação à morte
do filho, ou marido, como de soldados em relação à sua morte ou de
camaradas.
A ligação entre o "espiritualismo
religioso" e a "experiência de guerra" é evidente na arte memorial
comemorativa dos monumentos à Grande Guerra. Muito marcante em França, a
Grã-Bretanha ,devido à sua posição religiosa anglicana, apresenta uma
estética mais linear e integrada na paisagem. Portugal seguiu uma
estética republicana entre o romantismo e a separação do Estado da
Igreja.
O período de 1914-18 foi o apogeu
do espiritualismo religioso e profano na Europa, mas por volta de 1930
já tinha passado e regressado a valores residuais na sociedade, mas
culturalmente e sobretudo na pintura influenciou profundamente o
surrealismo3.
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Os Monumentos
Memoriais e o Processo de Luto
A necessidade de entender as
razões da Grande Guerra, e no caso nacional o da intervenção na Europa,
começaram assim se deu entrada no conflito. Os memoriais, sejam
monumentais, esculturas ou simples placas, encontram-se espalhados por
vilas e cidades de todo o Mundo, para que todos se recordem dos
sacrifícios que aconteceram entre 1914 e 1918.
Hoje as comemorações são
diferentes de país para país, dependendo da sua intervenção na guerra,
cultura e religiosidade. Em França os memoriais são maioritariamente
"monumentos aos mortos", inclusive o monumento português que se encontra
em Nord-Pas de Calais, que os coloca numa lógica de sofrimento e
sacrifício. Na Grã-Bretanha e outro países anglo-saxãos, incluindo a
Alemanha e a Áustria os monumentos são menos representativos do
sofrimento, mais ambíguos, representando mais a guerra como
acontecimento histórico, do que o sofrimento individual. Aquilo que os
nossos antepassados sentiam quando viam os monumentos é diferente
daquilo que hoje, década passadas e sem um vivência directa da guerra
vimos nesses mesmos monumentos. No entanto, têm em comum uma tradição
arquitectónica de esculturas publicas, que se inserem na definição
cultural de cada nação e representam sempre um símbolo de orgulho
nacional.
Actualmente é feita uma
interpretação política da estética dos monumentos, tentando
interpretá-los com base em ideários monárquicos, republicanas ,
nacionalistas, fascistas, comunistas ou democráticos, ou ainda, como
monumentos à "guerra". Para os contemporâneos tinham um significado
diferente, uma vez que eram interpretados como símbolos das perdas
pessoais (filhos, maridos e amigos) e representavam um reconhecimento do
Estado perante o sacrifício individual e a partilha do luto. Eram locais
de partilha colectiva da memória de guerra.
Alguns monumentos foram
construídos, ainda, durante o conflito, como o monumento que se encontra
no cemitério
de
Nossa Senhora das Angústias, na Madeira, inaugurado
a 3 de Dezembro de 1917. mas a maior parte foi após o Armistício.
Os monumentos memoriais estão
colocados em três tipos de espaços. Durante o período de guerra eram
colocados junto dos locais de combate, no pós guerra passaram a se
colocados locais públicos das vilas e cidades, e por último em
cemitérios. Actualmente em Portugal existem casos em que os monumentos
que foram colocados em cemitérios foram transferidos para praças
públicas, como o monumento aos combatentes da Grande Guerra em Castelo
Branco.
Os monumentos colocados em locais
públicos têm em comum um sentido patriótico, demonstrando a
universalidade do sacrifício, o sentido de dever nacional e demonstram o
valor dos soldados pertencentes à comunidade. Os monumentos em
cemitérios são mais restritos e ligados ao sacrifício da comunidade em
relação à Pátria, como uma demonstração de dever sagrado, ligado à
religiosidade da comunidade. Só entendendo uma alteração da
religiosidade de uma comunidade e a perda da ligação directa e afectiva
da sociedade com os seus mortos, visto se terem passado mais de 90 anos
do Armistício, se compreende a transferência de local monumento que se
encontrava num cemitério para uma praça pública.
A utilização da cultura popular
como forma de mobilização da nação para o esforço de guerra foi
utilizado por todos os intervenientes no conflito. Cada nação
desenvolveu a sua própria linguagem, mas houve um factor comum, o qual
tendeu a colocar os combatentes de 1914-18, como os homens que
preservavam as virtudes e guerreiras. Os países celebraram os seus
heróis do passado, do exército ou da marinha, dentro das tradições
nacionais, e para aqueles em que não existiam figuras tão marcantes na
história, como a Austrália e Nova Zelândia, celebraram de forma
geral e simbólica o soldado e o marinheiro comum, como a ligação ao
passado militar. França na sua tradição gaulesa celebrou desde o soldado
ao grande comandante.
Imagens comemorativas eram
vendidas em grandes quantidades, tanto em artefactos como em cartazes.
Também foram produzidos muitos objectos domésticos comemorativos, entre
muitos destaca-se as "cruzes comemorativos" alemães, cosidas à roupa,
toalhas e mantas, ou bordadas com pregos sobre uma superfície de
madeira. Mas esta industria comemorativa foi transversal à França
e à Inglaterra. Também foram produzidos materiais para cerimonias
públicas, tipo pronto a usar. Na Alemanha a Cruz de Guerra foi um
dos símbolos mais usados. Eram também muito usados símbolos como a Cruz,
muito mais em países protestantes do que católicos, uma vez que a
iconografia protestante limitava a utilização de outros símbolos de fé.
Ressalve-se que a cultura popular alemã imperial era essencialmente
protestante. Ao longo da guerra os alemães comemoravam a batalha de
Tannenberg, Agosto de 1914, e centravam a personificação da vitória no
seu herói nacional Paul von Hindenburg.
Os rituais comemorativos estavam
cercados pela lenda guerreira dos povos, e uma tradição nacional,
tendendo a fazer um apelo ao sacrifício dos soldados e à dívida dos
cidadãos perante o seu sacrifício supremo, a morte.
Após o fim da guerra as
comemorações deixaram de ter um sentido mobilizador, perdendo parte da
linguagem referente ao nacionalismo patriótico e passaram a tem uma
linguagem mais virada para a desolação, sacrifício, perda e luto. A
industria comemorativa transforma-se e os objectos produzidos deixam de
ser mobilizadores para passarem a ser de consolo e suporte à perda
humana. A Igreja, as associações de apoio a ex-combatentes e as
comunidades locais passam a dedicar-se a cerimónias públicas de
lembrança do Armistício e muitos dos monumentos são construídos por
contribuição pública.
Muitos dos memoriais foram
construídos com características religiosas e colocados em locais como
pátios de igrejas e cemitérios, mas também em praças e jardins públicos.
A separação do Estado da Igreja, tanto em França como em Portugal, assim
como o anglicanismo britânico, levaram à sobriedade iconografia dos
monumentos memorais da Grande Guerra. A arte monumental apresenta-se na
fronteira entre o cristianismo e o paganismo, numa quase religiosidade,
dentro dos padrões da arte funerária do início do século XX.
A Cruz como representação do
sacrifício máximo para o Cristianismo, foi um dos símbolos mais
utilizados para a representação do sofrimento. A escultura “Canada’s
Golgotha” de Derwent Wood, foi um dos extremos da representação da Cruz,
quando representou o mito da crucificação de um soldado do Canadá por
topas alemãs.
Um dos meios utilizados para
difundir a ideia de sofrimentos foi a fotografia de Cristo na Cruz, em
altares de igrejas destruídas ou em nichos espalhados pelos campos de
batalha. Imunes às balas desafiavam a morte. Uma destas imagens
encontra-se no Mosteiro da Batalha, na sala do Capítulo, a encimar o
Túmulo do Soldado Desconhecido.
As comemorações da Grande Guerra
foram, e são, uma expressam de esperança. Construídos em locais visíveis
são o primeiro passo para o "Culto dos Mortos", numa visão sobre a
reconstrução nacional e de legitimação do luto individual e da
comunidade. Com forte valor simbólico foi aproveitado politicamente
pelos fascistas italianos e alemães, no entanto, a principal função era
de desconstruir a morte, o horror, o trauma e o sofrimento individual,
produzindo o efeito de um funeral oficial das vítimas de guerra, para a
comunidade local onde se inseria o monumento. Cada nação teve a sua
própria forma de expressão dos sentimentos e cada um ficou represento o
caracter da população local e a sua sensibilidade.
A existência física do monumento
memorial e a possibilidade de tocar os nomes daqueles que morreram pela
Pátria, é um importante e faz parte do ritual de separação que os
envolve. Muitas fotografias da época mostram pessoas a tocar os
monumentos, num gesto que os liga aos lugares é aos tempos de combate.
Luto e melancolia são a razão destes gestos, de acordo com Freud(1917),
e este ritual é libertador e permite o retorno à normalidade do dia a
dia. Os monumentos transformam o sentido de perda palpável e generaliza
a dor. Os monumentos ajudam a sociedade a demarcar o limite da dor e
marcam um um ponto final na morte.
Os monumentos memórias estabelecem
o limite entre os mortos e os vivos, e representam a arte do
esquecimento. São um marco no ritual de passagem e por isso estão
ornamentados de símbolos religiosos, pagãos e profanos. Pela serenidade
que os cemitérios transmitem a arte memorial é nestes locais mais
abstracta e austera. Independentemente de terem sido esculpidos por
artistas tradicionalistas ou modernistas existiu sempre a preocupação de
expressar a dívida dos vivos perante os mortos. Os monumentos
memoriais e os cemitérios de guerra são um pequeno tributo perante
aqueles que viveram e morreram durante a maior guerra do século XX4.
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Notas
- 1.
Winter(2005), pp.15-28.
-
2.
Winter(2005), pp.29-53.
-
3. Winter(2005), pp.54-77.
-
4. Winter(2005),
pp.78-116.
-
5. Cortesão(1919),
p. 152.
-
6.
Cortesão(1919), p. 149-156.
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Links
http://www.dailymotion.com/video/xc3xb1_j-accuse_shortfilms
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Bibliografia
- Rosas,
Fernando e Maria Fernanda Rolo, coordenação(2010), "História da
Primeira República Portuguesa",2ªed., Lisboa, Tinta da China. (ISBN:
978-972-8955-98-4)
- Winter,
Jay and Antoine Prost, (2005), "The Great War in History, Debates
and Controversies, 1914 to the Present", Cambridge, 1ª ed.,
Cambridge Universitu Press, (ISBN: 978-0-521-85083-4)
- Cortesão, Jaime (1919),
"Memórias da Grande Guerra, (1916-1919)", Porto, 3ª ed., Edição da
Renascença Portuguesa.
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