Entre a
Lembrança e o Esquecimento
Foi em Abril de 1920 que foi
escolhido o corpo de um soldado desconhecido, entre os que morreram na
Batalha de Verdun. Doze anos mais tarde, em 1932 foi inaugurado um ossário, em Douaumont, França, que contém um urna com um conjunto de
ossos misturados de soldados desconhecidos franceses e alemães, num
sinal político de paz.
Durante o período entre as guerras
a linguagem utilizada nos discursos oficiais comemorativos da guerra,
pelos políticos e associações de antigos combatentes, era feita de forma
a conjurar o espectro daqueles que tinham morrido por "nós".
Em 1984 o Presidente francês
François Mitterrand e o Chanceler alemão Helmut Kohl, fizeram uma visita
conjunta ao campo de Batalha de Verdun e, dando as mãos, marcaram uma
nova etapa na construção da união europeia, simbolicamente reconstruir a
Europa sobre as ruínas.
Hoje em França, Alemanha e
Grã-Bretanha a comemoração do "Dia da Recordação" (Remembrance Day ),
é feito com base numa linguagem de memória sobre os acontecimentos, numa
visão social das consequências da guerra, as quais foram partilhadas por
milhões de cidadãos de toda a Europa e hoje relembradas nas escolas. O
ritual da recordação da guerra continua a juntar elementos do sagrado e
do profano, mas fundamentalmente é uma lição de cidadania para a
juventude.
No caso português, e muito pela
concorrência do dia 9 de Abril com o 11 de Novembro, não é dada
suficiente visibilidade ao dia e a participação e contemplação do ritual
fica aquém do que se deve recordar.
Numa primeira fase, entre 1918 e
1970, os discursos mantinham na sua base a recordação de como a guerra
foi na realidade. Ainda existiam combatentes vivos que presenciavam as
comemorações e dificilmente se poderia falar sobre o que se pensava
sobre a guerra na presença daqueles que a testemunharam. Os
combatentes demonstram sempre grandes dúvidas sobre os autores que
escreveram sobre a guerra e que não estiveram no front.
Também é evidente que as memórias
dos combatentes foram utilizadas como armas políticas, em prol da paz
,ou da guerra como aconteceu com o movimento nacional-socialista alemão.
O ensino da história foi também
palco de politização e aquilo que tem sido ensinado, não é sempre aquilo
que aconteceu. no período entre as guerras a história apresentava uma
visão patriótica e a questão das trincheiras e das condições de vida
eram muito atenuadas. Em França os roteiros Michelin chegaram a publicar
roteiros turísticos de visita às trincheiras, que deve ser mais
considerado no contexto da banalização da guerra do que no contexto
didáctico.
Após a 2ª Guerra Mundial, e mais
propriamente após 1965, ocorreu uma grande inovação no estudo da
memória de guerra com a abertura dos arquivos e com a introdução de
programas televisivos sobre o tema.
O nascimento de "o mito da
experiência de guerra" definido pelo Mário Isnenghi (1970) e
posteriormente desenvolvido por George Mosse (1990), serviu para
compreender como a memória de guerra pôde mobilizar multidões na
Alemanha nacional-socialista e na Itália fascista. Também facilita a
compreensão da brutalização do comportamento da sociedade antes da 2ª
Guerra Mundial e a hostilidade entre grupos, o que não existia antes da
Grande Guerra, e ainda, a nível político a utilização da violência como
primeiro recurso e não como último recurso.
Podemos ver dois caminhos antagónicos
no desenvolvimento dos rituais de comemoração da memória de guerra: por
um lado como a manutenção de uma chama viva de violência e sacrifício,
mantendo a sociedade aberta à brutalidade da guerra como um caminho para
adaptar essa mesma sociedade à justificação da violência, ou seja, no
caminho entre Verdun e Auschwitz; ou por outro lado como uma recordação
cuja mensagem pretende a que no futuro não haja uma repetição da
brutalidade da guerra.
Após 1975, em muito contribuiu a
derrota americana no Vietname, a memória da Grande Guerra é um
entendimento da violência em que a Humanidade vive. É uma memória
retractada individualmente ou colectivamente, que se repercute nas
famílias e na comunidade. Neste ponto é importante entender as
representações, memoriais e cemitérios, que se tornaram locais de
peregrinação dos veteranos.
Mas a visão da guerra também é
mantida por outros meios, como os museus, a literatura e os filmes, que
fora do circuito académico, transmite aquilo que os americanos chamam a
"história pública". Desde os anos 80 que tem crescido o interesse pela
Grande Guerra e esta procura é quantificável pelo aumento de visitantes
às exposições do Imperial War Museum e ao Les Invalides, novelas e
filmes editados.
As diferenças nacionais levaram a
cada um dos países a projectar a memória da Grande Guerra de formas
diferentes. A França optou por centralizar a memória num projecto
pedagógico nacional. a Grã-Bretanha faz parte integrante da preparação
dos alunos para uma cidadania activa. Na Alemanha só é abordada desde
1970 e é apresentada em forma de mito, lendas e em forma de um passado
nacional abstracto. Em Portugal foi até 1974 referenciada, mas sempre
remetida para um plano marginal, por umas ou outras razões, mas sempre
por razões políticas.(1)
O Culto Cívico dos
Mortos e a Eternidade da Memória
A República, em 1910, abriu uma luta
directa com a Igreja Católica, com o intuito de se afirmar e laicizar as
estruturas do poder, as quais se encontravam muito ligadas às estruturas
da Igreja e por vezes até confundidas na província. No entanto, alguns
factores culturalmente enraizados, como as formas de luto e de proceder
em funerais, dificilmente poderiam ser abandonados ou laicizadas de um
dia para o outro.
A morte, enquanto factor de ligação
entre o presente e o passado, não podia deixar de ser acompanhada por
rituais, e no limite poderia sim ter novos rituais, mais ligados a um
culto cívico do que a um culto religioso, numa perspectiva igualitária.
Mas não foi com a implantação da República que se iniciaram as
alterações no culto dos mortos, com a criação de cemitérios civis fora
das igrejas, ainda na Monarquia, muito ligado às correntes iluminitas,
razões de saúde e porque durante o processo revolucionário da revolução
francesa tinha-se banalizado a morte e secundarizado o destino dos
mortos. (2)
É efectivamente com a República que
em 1911, decreto de 2o de Abril, é reconhecido aos cemitérios o
"carácter secular, ficando libre a todos os cultos religiosos a prática
dos respectivos ritos, desde que não ofendam a moral pública, os
princípios de direito público português e a lei". (Lei da Separação
das Igrejas do Estado Artigo 56)
(3)
Com a Grande Guerra a questão da
morte torna-se um facto predominante na vida quotidiana, tanto pelos
mortos em combate, como pelos mortos por doença nas zonas de guerra, mas
também pelos mortos pela fome e pelas epidemias, tifóide e pneumónica,
que assolaram Portugal.
Por volta de 1918, o controlo
administrativo dos cemitérios, e por consequente da morte, já se
encontrava fora do poder da Igreja. Com o abandono sucessivo da
utilização da vala comum, predominava o incremento do funeral
individualizado que fazia sobressair o culto da memória dos mortos
dentro da esfera da família e não da comunidade, convertendo o espaço
dos cemitérios em espaços de memória.
A República, na sua campanha de
laicização, compreendeu que a morte não era um fenómeno social, político
e ideologicamente neutro, facto que levou a aumentar os seus cuidados
com o "culto exterior" dos mortos, numa nova visão de socialização da
população, e com o objectivo de dar ênfase aos funerais dos "grandes
homens" a ligação à sua nova família, a Nação. Tal como tinha acontecido
em França o funeral de Napoleão, em Inglaterra o funeral de Wellington e
em Portugal o funeral de D. Pedro V, bons exemplos de "funerais-pretexto",
as cerimónias de consagração tinham conseguido ganhar interesse político
junto do Governo da República.(4)
Neste contexto, o funeral, enquanto
rito de passagem, é entendido como uma liturgia em que os vivos
enfrentam a desagregação social e procuram construir novas ligações com
a memória, muito visível nas diversas fases do funeral: o velório, o
cortejo e os discursos à beira-túmulo, e com a educação da ordem moral
cívica nos funerais com dimensão colectiva e pública. Neste contexto
pode-se incluir as romagens cívicas a túmulos de heróis, como ainda hoje
é organizado pela Liga dos Combatentes da Grande Guerra ao Túmulo do
Soldado Desconhecido, na Batalha.
Com o esforço na crença na
sobrevivência da memória dos seus mortos, ou dos Heróis enquanto
pertencentes à família Nação, a República manteve-se integrada neste
culto, com a organização de visitas, ou romagens, aos cemitérios para a
respectiva evocação simbólica das suas figuras-mito ou de referência.
Neste contexto, compreende-se a transladação dos soldados desconhecidos
de África e da Flandres, à imagens do que foi feito em França e
Inglaterra, e por isso o seu cunho declaradamente comemorativo, de
dimensão colectiva e com presenças internacionais, legitimadoras do
sofrimento e da glorificação da Nação, uma espécie de segundas exéquias
consagradoras da hagiografia cívica e republicana.
O funeral dos "Soldados
Desconhecidos" explica-se à luz da necessidade de reavivar a memória, de
ligar os cidadãos a um passado histórico e simbólico e projecta-lo num
contexto de valores cívicos, unificadores de todos os que participaram
directamente na Grande Guerra com aqueles que sofreram indirectamente o
conflito, numa perspectiva do desenvolvimento de valores socais da
Pátria.(5)
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