A Organização
Militar Portuguesa
Na
metrópole o Exército encontrava-se inactivo desde 1815, à parte de
alguns momentos de guerra civil, mas que do ponto de vista táctico e
estratégico da arma não representam situações de manutenção da
disciplina e da eficiência militar.
Acompanhava de longe a evolução material e táctica dos exércitos
europeus, pelo que se encontrava inapto a entrar em qualquer conflito de
maior dimensão, inclusivamente teria muitas dificuldades para prestar
um resistência eficaz a um ataque vindo de Espanha, se bem que este país
apresentava igual grau de inoperância.
A
questão da motivação no Exército português, se bem que à data não
existissem ainda estudos científicos sobre o medo e a coragem, nem
suficiente conhecimento empírico sobre motivação e disciplina, não
existia dentro do quadro de oficiais superiores a capacidade e a
experiência suficientes para montar campanhas militares com a dimensão
que os teatros de operações de Moçambique e França viriam a
requerer.
No
teatro de guerra na Europa existiu no seu essencial uma guerra de desgaste
físico e psicológico, cujo índice quantificável da força individual e
colectiva para superar os esforços exigidos, ou seja a capacidade
anímica de vencer, foi demonstrado pelo nível do moral das tropas em
combate. Nos teatros de guerra em África onde essencialmente se
verificou uma guerra móvel, mais que o desgaste psicológico,
verificou-se um desgaste físico e falta de condições médicas.
Foi
facto que os altos comandos militares portugueses não compreenderam, nem
conseguiram tomar medidas para ultrapassar estes pontos fracos, cingindo
o seu comando às questões militares tácticas e de intervenção política,
aceitando as dificuldades que lhes deparavam como uma questão
etno-psicológica nacional, uma subalternização psicológica perante os
ingleses e os alemães, sem compreender o arcaísmo em que a instituição
militar caíra.
A
disciplina militar do Exército era fraca, reflexo inevitável das
convulsões civis, derrube do regime monárquico, com as consequentes
purgas de oficiais profissionais do exército, e sucessivas convulsões republicanas
durante a 1ª República.
(1)
O corpo
de oficiais superiores não conseguiu manter a lealdade do Exército em
torno da Monarquia, mas também não criou qualquer entusiasmo para
com a República, o que levou a que o Governo da República compreendesse
que era necessário iniciar rapidamente uma reforma da estrutura militar.
Entretanto, os oficiais vão perdendo o controlo dos seus regimentos para
as mãos de comités de cabos e sargentos e a grupos de civis, muitos
ligados à maçonaria carbonária. Em consequência desta situação, em 1911,
a cadeia de comando no Exército estava destruída e mesmo os oficiais
republicanos que entretanto foram colocados nas unidades, por promoções
e colocações políticas, também não conseguiram controlar eficazmente as
unidades militares, devido à força que os comités de vigilância de cabos
e sargentos tinham sobre as praças.
Assim, em
1911 o Governo da República vê aprova uma reforma do Exército, tendo
nesta optado por um modelo tipo Suíça, com um corpo mínimo de oficiais
profissionais e a restante parte preenchida por oficiais e praças
milicianos. Existia a consciência que esta reforma, para a
dimensão e para a cultura nacional, implicaria a curto prazo a extinção
do exército, pelo menos como força militar operacional, mas o Governo
tinha a consciência que se optasse por manter um exército profissional, a
médio prazo seria o suicídio do regime uma vez que os jovens oficiais
profissionais também não apresentavam grande aderência ao regime republicano.
(2)
Lei da Reforma do Exército - 25 de Maio de 1911
O
Decreto-Lei de reorganização do Exército foi publicado em 25 de Maio de
1911, onde foi estipulado o fim do exército profissional permanente e
foi apresentada a organização da nação em armas, com um serviço militar
obrigatório de 15 a 30 semanas nas fileiras e um sistema de oficiais
milicianos, no entanto manteve um corpo do quadro permanente na
metrópole de 11.699 homens.
Foi
introduzido a "instrução preparatória" aos 17 anos, com incorporação no
exército aos 20 anos, passando depois do serviço militar obrigatório
para a reserva territorial, onde os reservistas continuariam a
frequentar, durante 7 a 9 anos, uma "escola de repetição” de duas
semanas por ano. Também foi estipulado a abertura de uma "Escola de
Quadros" para a formação de oficiais milicianos. Esta reforma alterou
substancialmente a origem dos indivíduos mobilizados, ao obrigar a
prestação do serviço militar às camadas sociais urbanas médias e baixas, principalmente no que se refere à cidade de Lisboa e do
Porto.
Em 1912
a reforma do Exército mantinha-se quase toda no papel, em parte por
causa dos problemas existente nas colónias. Em África as campanhas de
pacificação de 1912-13 em Moçambique, as campanhas de pacificação de
1911-14 em Angola, as quais continuaram durante o período da Grande
Guerra, e as campanhas de pacificação de 1912 na Índia e Timor, que
demonstravam a necessidade de manter um quadro permanente de oficiais,
praças e unidades operacionais permanentes. Houve, ainda, diversas
situações em que o Exército foi chamando para suster incursões
monárquicas e para actuar como força de intervenção em manifestações e
greves. Das diversas intervenções, o Governo da República ficou ciente
que a operacionalidade das unidades milicianas e a lealdade dos
respectivos oficiais milicianos era completamente imprevisível.
(3)
A
República também não conseguiu implementar o serviço obrigatório, porque
a sua máquina administrativa foi suficiente para boicotar o processo. Os
oficiais e os sargentos republicanos tinham o hábito generalizado de
"arredondar" o seu salário com "luvas" recebidas para livrar os mancebos
do serviço militar obrigatório. Isto implicou que apenas 26% dos
mobilizados anualmente chegassem efectivamente a serem incorporados em
unidades militares.
A
situação foi constante durante o período de 1911 a 1916 e de 1918 a
1926, apenas tendo sofrido alguma alteração durante as incorporações
para o Corpo Expedicionário Português. A República manteve a base de
recrutamento nas zonas rurais, nunca tendo conseguido alargar o
recrutamento às zonas urbanas em tempo de paz.
A
República destruiu o Exército com a sua reforma de 1911, porque não
conseguiu acompanhar a reforma orgânica, com uma reforma social,
ideológica e militar. Mesmo o regulamento disciplinar introduzido em
1913, não conseguiu alterar os problemas existentes ao nível da linha de
comando, uma vez que entre os oficiais superiores, os oficiais
republicanos promovidos politicamente e as praças, existiam os sargentos e
cabos, organizados em comités apoiados por civis revolucionários que impossibilitavam qualquer
acção organizada e concertada de comando das unidades.
(4)
Em
1914, com o início da Grande Guerra o Partido Democrático (belicista)
força a preparação rapidade um corpo expedicionário para
enviar para França, mas dos efectivos da 8 Divisões que existiam em
papel, nem para guarnecer uma Divisão chegavam na realidade e, ainda,
faltava equipamento suficiente e moderno para equipar o Corpo
Expedicionário.
A nível ideológico acrescia a dificuldade de convencer
os militares a lutarem ao lado dos ingleses, que os tinham humilhado, há
tão pouco tempo, por causa do "Mapa Cor-de-rosa".
Destruída a tradição militar do Exército e falhada a conversão de
Exército profissional para Exército miliciano, este “novo”
exército, baseado numa doutrina de "nação em armas", não representava
uma solução digna do respeito internacional, encontrando-se
operacionalmente incapaz de cumprir sozinho, pouco mais do que para missões de
pacificação nas colonial.
A Mobilização do
Exército
Tropas para a Europa
A ordem de mobilização parcial do
exército português foi divulgada publicamente por cartazes afixados
pelas paredes das cidades. Eram largas folhas brancas cortadas
diagonalmente por uma faixa vermelha, onde se fixavam os detalhes da
mobilização. Junto a estes formaram-se grupos compactos de homens e
mulheres, e em alguns locais ouviam-se ler as ordens em voz alta. Foi
grande a agitação. Em Lisboa, onde se centra a descrição de André Brun,
durante todo o dia viveu-se uma agitação. Em alguns locais houve
conflitos entre populares, entre aqueles que entendiam a mobilização
como um dever e aqueles que entendiam como imposição sem nexo e
imprimiam desanimo e boatos de terror. Nesse dia os jornais apresentavam
em termos patrióticos a situação e as circunstâncias que os levavam a
aceitar o sacrifício.
Houve júbilo na cidade de Lisboa,
colocaram-se bandeiras nas janelas e centenas de pessoas aplaudiram uma
força militar que atravessava a cidade em serviço. Políticos e oficiais
foram aplaudidos e receberam vivas.
Durante os seis dias que estavam
indicados no edital para se apresentarem nos centros de mobilização
foram chegando os militares em massa. Os quartéis de Lisboa tornaram-se
insuficientes para alojarem todos os militares o que levou a que se
utilizassem outros edifícios públicos. A mobilização trouxe uma nova
situação social, operários, comerciantes, burgueses, engenheiros e
doutores, todos a conviverem no mesmo espaço e vestidos de igual brim de
campanha.
Partida de tropas para França -
Estação de Guimarães
Partida de tropas para França - Estação de Tondela
Reunidas as forças militares em
Lisboa, tal como se encontrava previsto foram dispersas por vários
locais nos arredores, conforme as armas, para praticarem uma instrução
intensiva. Os jornais foram preenchidos com textos assinados por
políticos e letrados que apoiavam entusiasticamente a acção militar e as
vozes de desanimo foram abafadas. Os jornais, naqueles dias, conseguiram
transmitir a opinião de quanto era perigoso semear a discórdia entre
portugueses e conseguiram uni-los em torno da bandeira nacional.
Foi notícia com grande antecipação
nos jornais que a Divisão Expedicionária ia deixar Lisboa, para os
locais de instrução. Uma das Brigadas de Infantaria foi para Mafra,
aproveitando a grande capacidade de alojamento do convento e os terrenos
da imensa tapada.
Lisboa começou a ver partir novamente
os soldados, era já a quarta vez que num espaço de alguns meses se
despedia de soldados, no entanto estes ainda não partiam para a guerra.
O transporte começou em Dezembro, saindo os militares logo de manhã
muito cedo, desfilando entre os quartéis e a estação, onde comboios
especiais os esperavam. O caminho foi feito em formatura acompanhado por
cornetas e tambores e a população, mais uma vez, acompanhou e animou a
despedida.
Na estação de comboios de em Santa
Apolónia, um enorme comboio esperava os militares de portinholas
abertas. Em cada portinhola encontrava-se indicado a giz a informação de
quem as devia ocupar. Os militares embarcaram e o comboio partiu entre
aclamações, "Viva Portugal!, Viva o Exército! Viva a República!", e o
aceno agitado de lenços. (5)
É de reparar a existência de
indicações a giz nas portas das carruagens.
Nem todos os homens mobilizados para
França foram nas suas unidades, como por exemplo o caso do Regimento de
Infantaria de Chaves que forneceu homens para o 2ª Depósito de
Infantaria do CEP, que em parte foi colmatar faltas no BI 15 (Tomar), e
nem todos os militares eram inexperientes, parte já tinha combatido em
África.(6)
A Instrução Militar
Desde o
início do processo da constituição de forças militares expedicionárias,
referimo-nos ao processo de selecção e ao processo de recrutamento, verificam-se erros umas vezes por incapacidade, outras por pressão de
criação das mesmas em curtos espaços de tempo. Refira-se que a própria instrução
militar era muito difícil, uma vez que 48% dos mobilizados eram
analfabetos e apenas 0,6% tinha instrução secundária.
Na
preparação do Corpo Expedicionário Português (CEP) para França, em 1916,
em Tancos, o Governo pretendeu dar a ideia aos Aliados que tinha sido
conseguido formar um exército moderno, o que levou a que nos jornais se
fizesse propaganda ao "Milagre de
Tancos".
“...e a propósito de Tancos, não há dúvida de que nos podemos
envaidecer pelo nosso exército. Tudo ali, no dizer dos visitantes, que
têm sido milhares, é perfeitíssimo; em poucos dias preparou-se parte
desse exército para a guerra moderna, pelo poder de adaptação que é uma
das mais notáveis qualidades do português, matéria prima eminentemente
própria para todas as grandezas. E se acontece que uma ou outra vez a
obra sai aleijão, a culpa não é da matéria, de plasticidade admirável: é
dos moldadores.”
(7)
A
instrução preliminar dos soldados do CEP foi dada numa primeira fase de
forma geograficamente dispersa: nos quartéis da 2ª Divisão (Viseu), da
5ª Divisão (Coimbra) e da 7ª Divisão (Tomar), e só depois foi efectuada
a concentração em Tancos. Mesmo assim, as unidades não ficaram
concentradas nas cidades dos quartéis divisionais, tendo sido dispersas
por regimentos conforme as especialidades.
A
instrução em Tancos ocorreu entre Abril e Junho de 1916. Foi
então que Tancos se transformou numa improvisada "Cidade de Tendas" e de
algumas construções de madeira. A localização para a concentração das
tropas foi escolhida mais pelas condições naturais: plana, banhada por
dois rios (Zêzere e Tejo), e logísticas porque estava perto do caminho-de-ferro, do que de uma necessidade que envolver todos os
militares numa só unidade Divisional.
No
entanto, o treino militar em Tancos revelou-se insuficiente em termos de
formação psicológica, ou pelo menos em doutrinação militar, como se pôde
verificar pelos motins que se deram antes do embarque para
França. A transformação de cidadãos em soldados, ao nível da criação do
"Espírito de Corpo" e do reforço da "Força Moral" não foi conseguido. A
instrução militar ministrada não estava desenhada de forma a criar a
camaradagem e a disciplina necessárias para num contexto de guerra
desgaste físico e psicológico. O plano de instrução apresentava longos períodos de
descanso, em contrate com as poucas horas diárias de instrução.(8) Ao Domingo, alguns que viviam em
Lisboa pediam licença para irem a casa, outros passeavam pelas
redondezas do quartel.(9)
Terminada uma primeira parte da
instrução militar básica, foi dado um novo tipo de instrução, mais
relacionado com o que se iria encontrar na frente de combate europeia, a
guerra de trincheiras, em que se tinha transformado a guerra na Europa,
depois da batalha do Marne. Esta instrução consistia em cavar
trincheiras segundo um traçado de uma frente de combate imaginária, de
acordo com os regulamentos adoptados na França e de acordo com a
topografia do terreno. Cada companhia executava a sua trincheira e
introduzia de seguida melhoramentos e comodidades. Nesta instrução os
homens trabalhavam à vontade sob a direcção de sapadores e entre as
companhias existia uma competitividade para apresentar a melhor
trincheira.(10) Outro tipo de
instrução consistia em exercícios de marcha e combate e exercícios de
vigilância e reconhecimento.(11)
Mesmo
introduzindo exercícios tácticos virados para a guerra nas trincheiras a
instrução militar praticada em Tancos não se encontrava adaptado às
necessidades e exigências, uma vez que não foi
capaz de incutir disciplina suficiente nas praças e nos oficiais. Podemos
considerar que a disciplina é o meio de obter um objectivo e não o
objectivo em si, mas seja qual fosse o nível que se pretendesse dar, não
foi conseguido. Falhou o processo de mentalização, falhou a construção
do "Espírito de Corpo" e foi insuficiente o treino físico.
Quando
os militares chegaram a França, para serem integrados no dispositivo
militar Inglês, passaram por um novo período de formação militar, parte
no centro de treino em Etaples, antes de serem enviados para a linha da
frente. A passagem por Etaples não se enquadrou numa necessidade de
colmatar somente falhas de instrução, mas porque todas as unidades que
chegavam a França, dentro da supervisão do comando britânico, fossem
portugueses, ingleses, australianos ou outros, passavam pelo campo de
instrução de Etaples para integração na frente de combate.
Por
outro lado, a "disciplina" poderia ter sido substituída por "liderança",
mas não foi. Os oficiais não só não deram um exemplo de boas práticas,
tão necessário para colmatar as insuficiências disciplinares, como se
comportavam de forma repreensível, destruindo a autoridade que lhes era
devida. Ao Exército português faltou um modelo interno a seguir, a
destruição do exército profissional monárquico em 1910 e a conversão do
exército em "povo em armas" destruiu a capacidade militar e o
"Espírito de Corpo", não obstante existirem numerosos exemplos individuais de
grande capacidade militar entre oficiais e praças. Um
homem disciplinado faz coisas instigado por alguém com autoridade,
porque sabe que caso contrário é castigado. Um homem moralizado faz
coisas porque a sua consciência assim o indica e não porque é instigado
por alguém com autoridade. Mas para isto é necessário que a justiça seja
clara e funcione ou estejamos perante um corpo militar moralizado.
Quando a disciplina e a moral falham só podemos esperar que o corpo
militar se comporte como um grupo heterogéneo, como uma multidão, e que
apenas obedeça aos seus instintos básicos de sobrevivência.
As
praças portuguesas apesar da proibição de actos violentos entre
si ou com militares aliados e do sistema de policiamento instaurado, causavam
graves perturbações, inclusive com a população civil. As rixas entre
portugueses e militares russos, ou militares britânicos, surgiam com
mais frequência do que com outras nacionalidades, apenas porque estes
estavam mais próximos da zona portuguesa. Esta situação era tanto mais
de desrespeito da autoridade à polícia portuguesa, que só o faziam onde
não existia polícia inglesa. O nível de violência variava entre a
individual à organizada em bandos.(12)
Os
oficiais portugueses comportavam-se na sua maioria de forma vergonhosa.
A sua linguagem era tal que algumas vezes, nas messes – diz o
Tenente-Coronel Maia Pinto - era preciso obrigarem-nos a calarem-se. Nem
mesmo diante de oficiais aliados se retinham desses comportamentos.
Por
último, e não menos importante o CEP encontrou pela frente um exército
moralizado, com uma atitude adulta e com orgulho na farda. Os alemães
sentiam que estavam a cumprir um desígnio nacional
e acreditavam na autoridade dos seus oficiais. As praças alemães
sabiam que podiam ser expulsas do exército por comportamento e que eram
submetidos a um Tribunal Civil para serem julgado, se assim acontecesse.
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