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Insubordinações Colectivas em Portugal, 1916 - 1917

"O melhor desmentido aos que aventam pouco entusiasmo nos nossos soldados em irem combater pelos interesses mais vitais do país fora do nosso território está na observação conscienciosa da maneira espontânea como eles se apresentam, da disciplina e garbo com que se movem de uns pontos para outros.


Após tão prolongado período de paz, em que nem um só minuto sequer se pensou na hipótese de uma guerra para cuidarmos a valer da nossa organização militar, é ainda para admirar que tanto se tenha feito em tão pouco tampo.


Depois, as dificílimas circunstâncias, de ordem moral em que a guerra tem colocado todos os países e especialmente o nosso, ainda mais dignos de apreço tornam os esforços empregados pelo governo e pelos nossos comandantes militares para que a mobilização se faça sem atritos de maior e os contingentes, que tiverem de ir para França, se apresentem de forma a honrar-nos debaixo de todos os pontos de vista.


Todos timbram em que assim aconteça. Desde o mais modesto soldado ao mais graduado oficial, não há nem um só que não ponha o seu brio e o valor do seu braço ao serviço da causa de que depende o futuro de Portugal." (Ilustração Portuguesa, n.º 558, de 30 de Outubro de 1916,p. 355).


Logo com as primeiras licenças concedidas aos praças, finda a instrução em Tancos, começam a surgir as primeiras situações de deserção com fuga para Espanha. Associada à ideia de recusa de combater em França e com a iminência da intervenção, começaram a aumentar as dificuldades de mobilização de novos mancebos, não só pelo aumento de situações de suborno das Juntas Médicas de incorporação, mas também pelo aumento de fugas para Espanha, que era neutra no conflito. Estas situações tomaram proporções descontroladas. (Marques, 2008:34)


A 16 de Janeiro de 1917 o cônsul de Portugal em Ciudad Rodrigo informou da presença na sua zona de jurisdição de numerosos desertores portugueses. A 25 de Junho desse ano é a vez do seu homólogo em Tuy, comunicar idêntica informação, acrescentando que nessa área se tinha formado uma larga rede de passadores. Também, a 15 de Abril de 1917, 111 soldados haviam desertado do Regimento de Infantaria 3, em Viana do Castelo. Sete dias depois o mesmo fazem em Braga 68 homens de Infantaria 8.



A acrescentar às lacunas do processo de instrução militar, a inexistência de cultura militarista na classe de oficiais e a inexperiência militar dos oficiais milicianos, facilitou a propagação da propaganda anti-intervencionista no interior das unidades do exército, ao ponto de provocar a desmoralização colectiva dos oficiais e praças. O nível do moral individual dos militares era tão baixo que a licença de 8 dias que lhes era facultada, antes do embarque para França, era apelidada de "Licença Funerária". (Marques, 2008:47).


Neste contexto verificaram-se as seguintes insubordinações, relacionadas com a recusa de combater em França:


Covilhã (Junho de 1916)


Insubordinação grave que aconteceu no Regimento n.º 21, da Covilhã, que por volta de Junho de 1916, levou, nos termos do Regulamento Disciplinar, ao envio compulsivo de 342 praças, incluindo 8 sargentos, de castigo para África (Martins, 1934:152).


Lisboa (Dezembro de 1916)


O motim em Lisboa, a 13 de Dezembro de 1916, foi conduzido por Machado Santos, herói da Rotunda de 1910, que fez atrasar o embarque do Corpo Expedicionário Português para França e originou a substituição dos oficiais implicados no levantamento (Afonso, 2010:288).


Com este motim o CEP perdeu três comandantes de Brigada e dois Coronéis que passaram à reserva em consequência desta situação. (Henriques, 2001:12).


Leiria (Janeiro de 1917)


O motim em Leiria, em Janeiro de 1917, deu-se quando as tropas do Batalhão de Infantaria n.º 7, de Leiria, tentaram dificultar o embarcar no comboio que os iria levar até Lisboa e tentaram não embarcar no cais de Alcântara, mas os próprios oficiais conseguiram controlar e ultrapassar as situações (Henriques, 2001:12).


Santarém (Janeiro de 1917)

O motim em Santarém, em Janeiro de 1917, deu-se quando os oficiais do Batalhão de Infantaria n.º 34, de Santarém, se recusaram a embarque no comboio para Lisboa, o que levou à detenção e presídio destes. O perigo de propagar a desmotivação e a indisciplina a outra unidades militares levou a que este Batalhão não fosse enviado para França (Marques, 2008:45).


Penafiel (Julho de 1917)


O motim mais grave de resistência à ordem de marcha aconteceu em Penafiel, a 1 de Julho de 1917, quando o Batalhão de Infantaria n.º 32, de Penafiel,  se recusou a apresentar no quartel de modo a boicotar o transporte para Lisboa. Esta situação só foi controlada 13 dias depois e após a intervenção da Guarda Nacional Republicana (Marques, 2008:418-20).


Lisboa (Julho de 1917)


Outros motins aconteceram mesmo dentro do cais de embarque em Alcântara, como no caso da insubordinação dos praças do Batalhão de Infantaria n.º 9, de Lamego, que se recusaram a embarcar nos navios aproveitando a incapacidade de comando dos seus oficiais (Marques, 2008:49).


Os processos de transporte de tropas para França foi sempre problemático, tendo ocorrido diversos casos de recusa de embarque nos comboios de transporte para Lisboa e de recusa de embarque no navios para França. A isto acrescentaram-se casos de deserção de praças, e sobretudo oficiais, durante o período de marcha para Lisboa e mesmo já durante o período de tempo em que aguardavam o embarque para França nos quartéis de capital (Marques, 2008:45).


Lisboa (Dezembro 1917)


Motim do Batalhão de Infantaria n.º 33, de Lagos, que se encontrava em Lisboa para embarque para França no final de Novembro, mas como o transporte "NRP Pedro Nunes" se demorou em Brest, este ainda se encontrava em Lisboa a 5 de Dezembro. Envolveu-se no movimento revolucionário de Sidónio Pais, auxiliando o derrube do Governo.

Bibliografia


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Se bem que à data não existisse ainda estudos científicos sobre o medo e a coragem, também não existia um suficiente conhecimento empírico sobre motivação e disciplina no Exército português e, também, não existiam suficientes quadros permanentes com capacidade e experiência para montar uma campanha com a dimensão e os teatros de operações de Angola, Moçambique e França apresentaram.


A Grande Guerra foi no seu essencial uma guerra de desgaste físico e psicológico, cujo o índice quantificável da força individual e colectiva para superar o esforço exigido, ou seja a capacidade anímica de vencer, foi demonstrado pelo nível de moral das tropas. No entanto, o comando militar português não compreendeu, nem conseguiu tomar medidas para ultrapassar este pontos fracos, cingindo-se às questões materiais e tácticas, aceitando o facto como uma questão etno-psicológica nacional sem compreender o arcaísmo em que a instituição militar caíra.


Para a investigação das insubordinações colectivas verificadas no contingente português durante a Grande Guerra estabelecemos como metodologia de pesquisa, a análise sistemática de fontes documentais literárias nacionais e estrangeiras, uma vez que pretendemos comparar os comportamentos e as razões dos insubordinados, as relações intergrupais, as condições materiais e identificar situações que ocorreram noutras nacionalidades sobre a mesma realidade.